sexta-feira, 10 de abril de 2009
MORREU O RAMIRO
Há muito que se sabia que sofria de uma doença sem cura. Destas doenças da moda, como sói dizer-se. Há mais de um ano que estava “acamado” numa espécie de coma sem retorno. Mas como a esperança é sempre a última a morrer, os seus vizinhos esperavam que o Ramiro se aguentasse mais uns anitos. Afinal foram 45 anos de convivência na Rua Eduardo Coelho e Rua das Padeiras.
O Ramiro não morreu de velhice. Extinguiu-se, dizem, por desgosto. Não aguentou mais o descalabro financeiro dos seus “filhos”. “Opções erradas, maus negócios de quem não entendia a arte de investir, de comprar e vender”, diz alguém que sabia do que falava.
Desde sempre a relação comerciante/comércio foi como um amor entre um homem e uma mulher. Para manter essa chama acesa é preciso “paparicá-la”. Cuidar dela todos os minutos e amá-la como se fosse a última. Acontece que os filhos dos velhos comerciantes, nascidos em berço de ouro, que herdaram os negócios dos seus antecedentes, trataram as lojas, caídas nos seus braços sem esforço, como se trata uma meretriz: usa-se e deita-se fora. Nos seus colos, em prazer curto, era apenas uma coisa que servia para satisfazer os egos insatisfeitos por natureza de meninos ricos. Com o passar do tempo, os estabelecimentos foram perdendo a alma. E não se pode dizer que foi apenas a crise que lhes retirou o espírito. Foi o abandono puro e simples. Até há vinte anos atrás, metaforicamente, as lojas eram os “corpos” e os donos as suas almas, a projecção imaterial desses estabelecimentos. Era um entrosamento que não se via mas sentia-se.
Em todas as lojas, para além da sua designação comercial, o que emergia era o nome do proprietário. Apenas para exemplificar a ligação: era o Júlio das rendas; era o Coimbra da Praça Velha; era o Catarino da ourivesaria, era o Paiva dos sapatos; era o Carlos Almeida das armas; era o Ramiro dos bebés, na Rua Eduardo Coelho, aquele de que falo agora com tristeza.
A partir do momento em que morreram os velhos fundadores, salvo raras excepções, os estabelecimentos, com os novos legatários timoneiros, entram em declínio, e, como almas errantes no universo esotérico, nunca mais tiveram descanso até ao tombo final.
O Ramiro de que falo foi até ontem um estabelecimento com o nome do fundador e proprietário desaparecido do mundo dos vivos há mais de trinta anos. Chegou a ter cerca de dez empregados. Até ontem tinha um, o Humberto. Trabalhava para o Ramiro há quarenta anos. Como aio leal e dedicado nunca quis abandonar aquela casa que quase viu nascer. Era ele que abria e fechava o estabelecimento. Como guardador do “menino”, o seu ilusório cordão umbilical, o seu amor materializado residia naquela chave que, diariamente, abria e fechava a porta do universo de vida de Humberto. Ontem à noite, numa crueldade que só os humanos são capazes de fazer, os administradores do velho Ramiro, sem respeito por quem lhes dedicou a vida, pediram-lhes as chaves com uma desculpa fútil.
Hoje, de manhã, de chofre, Humberto, pelas montras decoradas a cartão e anúncio de “arrendo”, ficou a saber que o “seu” Ramiro morreu.
Humberto, talvez preso a um velho aforismo, faz um grande esforço para não chorar. “É injusto, sabe? Estive aqui uma vida. É verdade que até ontem fui sempre bem tratado como pessoa. Mas, com este acto –que eu não merecia- parecem querer tratar-me como uma qualquer mercadoria. Mas olhe, não esqueça, repete o Humberto, como em êxtase, sempre me trataram bem…até ontem…”
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