terça-feira, 23 de abril de 2013

O FURAMUNDOS



 Os centros urbanos, em metáfora, são um lago onde convivem harmoniosamente todas as espécies piscícolas, Há os peixões, aquelas castas que, residindo em luxuosas cavernas do fundo, descendem de grandes famílias que sempre governaram a mancha de água já desde pelo menos um século para trás. Quando emitem sons todo o universo local se coloca em sentido e a maioria bate barbatanas às suas manifestações sonoras, mesmo que anedóticas e patéticas. Lá no tanque, encontramos os seus apelidos na universidade da biodiversidade, na biblioteca de algas marinhas, nos funcionários do paço regedor da vida animal e que gere os destinos da peixaria.
Depois há os peixitos, aquele grupo que só conta enquanto alimento e mão-de-obra para os peixões. Como formigas em verão de estio, atrelados com alguns filhos, vêmo-los esfalfados a atravessar o lago de um lado para o outro, num rodopio incessante em busca de alimento. Algumas vezes rebuscando as migalhas caídas dos opíparos repastos da classe soberana. Para além de serem os primeiros a cair no arrasto, aquando da faina dos predadores, porque estão mais expostos, este agrupamento também serve para votar e eleger sempre os mesmos na autocracia da mancha líquida de história retorcida e sem narrativa reconhecida.
E no meio destas duas classes há então os híbridos, aqueles que, para além de andarem permanentemente de boca aberta como se estivessem continuamente a pedir comida, não servem para nada. Não trabalham, não votam, não bajulam. Mesmo desprezados por todos, pela classe dominante e pela classe dominada, como tábua de mandamentos, prestam apenas para marcar as fronteiras entre a senilidade e o bom senso e o remedeio e a miséria. Apelidados por todos de loucos, estranhamente são livres. Não conhecem horários, dormem em qualquer recanto das profundezas do lençol de água, mesmo que imundas, e, ainda mais extraordinário, sorriem, sorriem como recém-nascidos livres de preocupações.
Estranhe-se também como é que eu querendo escrever sobre o senhor Mendes, personagem de mistério e que apelidei de Furamundos, dei uma volta ao figurativo interior da terra apenas para dizer que pessoas como ele, cromos e projecções de nós, e que existem em todas as comunidades, têm um encanto natural. Dificilmente conseguimos passar ao lado das suas interessantes formas de estar e (com)viver a pulular pela cidade, nem que seja, pelo menos, com um olhar fugidio.


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