LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "A GERAÇÃO MALTRATADA", deixo também as crónicas "VAI ABRIR O PRAÇA CAFÉ"; "REFLEXÃO: SUICÍDIO GERACIONAL"; e "A HELENA FEZ ANOS".
A GERAÇÃO MALTRATADA
O homem que tenho à minha frente
chora desalmadamente. Por arrastamento choro também. Tem 62 anos e desde miúdo
que aprendeu a tratar o comércio por tu. Filho de pais muito pobres, nos
arredores da cidade, o trabalho foi o único meio de angariar rendimento e
sonhar com uma vida melhor. Com 12 anos, por volta de 1960, começou a labutar
numa mercearia ali para os lados de Santa Clara. Entre segunda e sábado,
percorria os cerca de uma dúzia de quilómetros a pé, ida e volta, entre a
aldeia e a cidade. Naquele tempo só havia dois feriados no ano: dia de Páscoa e
de Natal. Na véspera deste dia do nascimento de Jesus, as vendas de géneros alimentícios, atendiam os fregueses até altas
horas, quase até à missa do galo. Um
dia, contou-me, num Natal do início do mesmo ano de 1960, por volta das 21h30,
estava ainda a arrumar as garrafas de gás para ir passar a consoada a casa,
quando o telefone retiniu na loja do tendeiro.
Era um cliente da Rua do Depósito, no planalto de Santa Clara, a pedir um litro
de óleo para confecionar as filhoses. Numa altura em que o freguês era o rei da massa e tinha sempre razão, o
velho merceeiro e patrão, em face do pedido, logo se prontificou na sua
satisfação e encarregou o marçano de
imediatamente ir à prateleira retirar um litro de óleo e marchar em grande
velocidade em direção ao planalto. O petiz, cansado e farto de calcar e calcorrear
as pedras da calçada, maldizendo o comprador, as filhoses e a sina que lhe
calhou em sorte de nascer pobre e ter de ser o burro de carga de todas as
solicitações e saco de todas as marradas,
foi à estante, por cima da tulha do açúcar, sem olhar para os rótulos, retirou
uma garrafa que colocou numa mochila para o efeito, e partiu desalentado em
busca do cumprimento da ordem dada. Meia hora depois estava a entregar a
encomenda à dona da casa, lá na parte alta da cidade, e, como boomerang predestinado ao regresso, fez
novamente o caminho inverso na orientação da casa do bacalhau ao quilo.
Encontrou o velho merceeiro à porta, colérico e completamente fora de si, com
um cacete na mão e a gritar: “meu filho de uma figa! Desgraçaste-me o negócio!
Então levaste um litro de petróleo?! A senhora queimou as mãos, meu desastrado!”
Dali, da casa dos fiados, sempre
a cavalgar nos dias, partiu para outro negócio e outro e outro até ir para a
tropa. Quando deixou o serviço militar casou com a sua namorada de muitos anos.
Foram viver para uma casa muito velhinha, lá na aldeia. Mas, noite após noite,
o nosso homem antes de adormecer elaborava mil planos para sair do patamar da
pelintrice. Mas como? Interrogava-se em solilóquio sem fim. A mulher era
costureira e ganhava pouco, que mal dava para as linhas. Ele continuava a
trabalhar numa casa comercial na cidade e o ordenado, para além de ser quase
invisível, parecia líquido, porque se esvaía por entre os dedos. Mas a fé em dar o salto, assente numa vontade férrea,
minava o dia e a sua penumbra. Os pensamentos em movimento, como andorinha a
cruzar o céu primaveril, eram apenas preenchidos com uma mensagem: “eu sou
capaz! Eu sou capaz! Vou vencer!”
Um dia, por volta de 1980, soube
de um pequeno quiosque numa entrada de um prédio que estava em trespasse. Foi
falar com o dono e acertaram o preço. Porém havia um problema: faltava o
dinheiro necessário. Foi falar com um amigo e, dividindo o investimento pelos
dois, depois de correrem Seca e Meca a arranjarem financiadores, sem rede, como kamikase suicida a atirar-se para a
frente em defesa da causa nobre, lá abriram o comércio. Durante anos e anos foi
comprar e vender até altas horas da noite, sem tempo para deprimir e muito
menos para dormir. Como recompensa de Deus, o negócio floria como rosa em terra
fecunda. Vieram os filhos, crescendo sem pai, estudaram e chegou o dia em que
foram admitidos na Universidade. E o nosso sonhador desfez-se em lágrimas de
prantos sofridos. Estava a dar aos seus o que não lhe fora oferecido pelos seus
ancestrais. Sentia um contentamento indescritível. Ali, naquela conquista
escolar que tanto significado tinha para si próprio, os seus herdeiros eram a
extensão de si mesmo. Constituíam a projeção e a realização de tantos sonhos
martelados em noites de lua cheia e de vazio quarto-minguante.
No início da década de 1990 já
era proprietário de três estabelecimentos e detinha meia dúzia de funcionários
ao seu serviço. A venda de produtos caminhava de vento em popa. Adquiriu o seu primeiro automóvel a estrear, a
seguir uma vivenda num bairro chique limítrofe da cidade. Em meados da mesma
década comprou uma casa na praia. Veio o virar do milénio e o futuro estava
garantido, pelo menos era assim apregoado pelos políticos da altura e pelo
crédito anunciado pelos bancos. Veio 2001 e o abalo causado pelas torres gémeas.
Aparentemente a economia continuava a rolar numa relativa normalidade. Nessa
altura surgiu um bom negócio, na possibilidade de comprar uma outra vivenda com
outras condições de bem-estar. O banco emprestava com a possibilidade de
esperar pela venda da primeira. E o nosso homem comprou. Caiu o céu sobre a
Europa e, como castelo de cartas, tudo descambou
em catadupa. A primeira casa não se vendeu, outras complicações surgiram e as
vendas decaíram a pique. E o comerciante que, ao longo da vida se atirou sempre
sem rede e sem resguardo, num ápice estava cheio de dívidas. Há dias apresentou
um pedido de falência. É único? Não, na volta do nosso olhar, há cerca de uma
dúzia de profissionais que estão na iminência de dar o mesmo passo. Para o
comerciante que agora pediu a insolvência –e para outros que lhe vão seguir-
gostaria de deixar um grande abraço, apertado e de sentimento. Que não se sinta
diminuído. Que não se deixe abater. Sei, porque conheço bem a sua história. Sei
que fez tudo o que podia para levar o seu navio a bom porto. Não conseguiu. Mas
não foi por falta de esforço e entrega à causa comercial. Uma grande, grande,
salva de palmas para este meu amigo.
VAI ABRIR O PRAÇA CAFÉ
Dentro de dias, com muita força e
coragem por parte do Luís Miguel Brandão, vai nascer um novo estabelecimento de
hotelaria na Praça do Comércio. Trata-se do Praça
Café, uma nova ilha verdejante que vem complementar o fantástico
arquipélago de hotelaria na mais encantadora praceta da Baixa de Coimbra.
O Luís Miguel, de 50 anos de
idade, estava desempregado desde 2011. Trabalhava na área ligada à construção
civil, mais propriamente em equipamentos de cozinha. Sempre gostou muito de
hotelaria, conta-me a sorrir e com ar confiante. “Bem sei que não tenho experiência no ramo, mas se a sorte protege os
audazes estou certo de que não se vai esquecer de mim. Não achas, Luís?!”
Para já, na montagem do café,
está a ser um bom ensaio. Para sua surpresa, a Câmara Municipal, no que toca à
prestação administrativa, está a portar-se muito bem. Os serviços têm sido
céleres. “Até ver estou muito bem com
eles, enfatiza. Sinto que há uma abertura muito grande para a simplificação dos
problemas, no processo de licenciamento. Estou contente, porque, para além de
intuir que compreendem todas as minhas imensas dificuldades, experimento uma
sensação de companheirismo nesta minha batalha. Curiosamente, a ideia que tinha
era que deixavam arrastar os processos “ad eternum”. Para minha surpresa,
agora, verifico com prazer que os meus receios eram infundados.
Já agora, aproveitando a oportunidade que O Despertar me concede,
gostaria de convidar todos os leitores para a inauguração deste meu sonho, que
conto ser possível já no fim deste mês.”
REFLEXÃO: SUICÍDIO GERACIONAL
Podem até falar-me de Átila, o flagelo de Deus,
de Calígula, o esquizofrénico filho de Tibério,
de Gengis Khan, o criminoso Mongol Imperador,
de Hitler, esse louco sanguinário de cemitério,
até Mao Tsé Tung, o homicida aterrorizador,
têm rosto, lugar na história, marca de magistério,
liquidaram milhões, dando a cara, em ódio castrador,
mas não me venham com assassinos de ministério,
que, matam, silenciosamente, pelo desânimo aterrador,
milhares de cidadãos que não suportam o despautério
de gente amoral, narcisista, filha de puta, cabrões sem amor,
que os condenam à indigência, à vida de impropério,
à vergonha de passar por um falhanço agressor,
após terem sacrificado a família, suado, em presbitério,
viram-se sem nada, espoliados, sem dignidade, com dor,
constataram que a sua passagem nesta vida de mistério,
não deixou memória, foi um vazio intragável de horror,
somente uma aragem ligeira
de um vento sem critério,
foi por isto tudo, e muito
mais, que o meu amigo, com ardor,
com a coragem que sempre lhe conheci, o Daniel Tibério,
partiu deste mundo sem se despedir, sendo o seu executor,
para ele, para o Zé,
para alguns outros deste hemisfério,
um sentido respeito pela sua escolha solitária, comovedor,
que a sua morte não fosse em vão e nos faça pensar sério,
e nos empurre para o expurgar deste genocídio conspirador.
A HELENA FEZ ANOS
A Dr.ª Helena Mendes, advogada na
Rua da Sofia, a “Lena” Sobral para os amigos, fez anos na semana que findou.
Não sei quantas primaveras por ela passaram, nem me desperta minimamente o
interesse. É completamente irrelevante e despiciente. Há pessoas que aos nossos
olhos nunca envelhecem e permanecem iguais para sempre –este, em paradigma, é
um caso desses. O que sei é que os invernos que calcorreou nesta vida, até
agora, lhe deram uma experiência empírica de sensibilidade, um pulsar de
sentimentos, que só quem calca espinhos e marca a alma a ferro incandescente,
pode entender o sofrimento alheio.
Como já se viu, gosto muito da Dr.ª
Helena Mendes, enquanto advogada, e da “Lena” Sobral, enquanto amiga. Se crendo
que todos cumprimos uma missão e não andamos por cá por mero acaso e capricho
do destino, acredito piamente que a minha admirada só poderia ser mesmo
causídica, defensora dos oprimidos e sem voz que dela necessitam. Muitos parabéns
pelo seu aniversário. Mas acima de tudo, intrinsecamente, uma grande salva de
palmas por ser a exceção, na boa pessoa que é.
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