Há cerca de vinte anos encerrou a
primeira mercearia no meu bairro. Eu não me importei com isso. Para além de eu
não ser merceeiro, em boa verdade eu julgava haver demasiadas vendas do género.
E mais, de vez em quando o senhor Mendes, o tendeiro, até embirrava comigo quando lhe pedia
um quilo de açúcar fiado. Isto para mais de já estar farto daqueles móveis
antigos e sempre acompanhados daquele cheiro intenso a bacalhau. A seguir foi a
loja de ferragens do Ganilho, do Augusto Neves e outras. Também não quis saber. De certo
modo até me senti vingado. Os filhos da mãe abusavam no preço do quilo dos
pregos e, para mim, eram antipáticos. Não me importei. Afinal até havia outras
lojas de ferro cá na zona. Depois foi o supermercado Colmeia que eu
frequentava, ali na rua principal. Não me deu grande abalo. Aliás, até
interiormente fiquei contente, os gajos carregavam à bruta no custo da fruta. Outros
seguiram o fenéreo, e depois? Tivesse
eu dinheiro que não faltava onde o gastar e pequenos mercados para fazer
compras.
Passado um tempo, na rua dos
bazares, uns a seguir aos outros, começaram a fechar todos os estabelecimentos de
brinquedos. Sei lá, o Bazar do Porto, de Lisboa, de Coimbra, foi tudo à vida. E
que me importava isso a mim? Ora, ora! Era certo que lá comprei todos os
divertimentos para os meus filhos mas agora eles já estavam crescidos. Aqueles
museus interactivos de brincadeira infantil não faziam falta nenhuma, e não me
importei.
O velho café, aquele das
tertúlias, o Arcádia, encerrou e passou para um pronto-a-vestir. Não deixei de dormir
por causa disso. Eu nem lá ia! Até digo mais, com o seu desaparecimento até
fiquei aliviado. Nunca fui à bola com
os tipos que o frequentavam. Tinham a mania da superioridade. Até pareço estar
a vê-los: erectos, pêra e barbicha, grandes bigodaças e pêlo na benta. Sempre me irritou aquela maneira altiva dos
doutores. Já antes tinham fechado os cafés Internacional, a Brasileira, a
Central e outros ainda. Eu tinha alguma coisa com isso? O tempo foi passando e
reparei que o quiosque onde comprava o jornal diariamente encerrou. Não dei
grande importância ao assunto. Sinceramente até andava a pensar em deixar de
comprar periódicos. Para que ando eu a encher o cú aos tipos da imprensa que,
em pagamento de martírio, estão sempre a bombardear-me com más notícias? Além
de mais, se esta tabacaria fechou havia outras. Aquilo não me causou dores na
carapinha. Soube depois que claudicou a mais importante livraria cá do burgo, a
Atlântida. Não sei bem, mas creio que já durava há uma catrafada de décadas. Não me importei nada. Raramente compro um
livro. Para quê? São caríssimos! E depois é cada tijolo que até me apetece
mandá-los à cabeça da minha sogra. Cerrou portas aquela e outras que foram na
fila? Não liguei patavina. Não me faziam falta nenhuma. Há sempre outras e
outras ainda que, depois da morte desta, nascerão. Fechou o estabelecimento de artigos decorativos o Neves & Companhia, na rua de cima. Eu nem perdi um segundo a pensar
nisso. Depois foram atrás a Crislex, o Saul Morgado e a Casa Bonjardim. Não me
faziam falta nenhuma. Havia comércio a mais! Eu queria lá saber disso?! Até era bom para os que ficavam. Começaram a
desaparecer as casas de artigos eléctricos cá do bairro e eu comecei a ter alguma
dificuldade em encontrar um componente para o meu computador. Mas também não me
causou engulho. Em qualquer altura pego no meu popó e vou comprar ao centro
comercial mais próximo.
Reparei que começaram
progressivamente a encerrar todas as casas de música, que vendiam discos e cd’s.
Não quis saber. Eu até fazia uns download’s
gratuitos na internet. Que tinha eu a ver com isso?
Esta semana encerrou o meu café;
aquele onde ia beber a bica todos os dias; era lá que ia comer o meu bolinho ao
lanche e ler o jornal à borliú. Era o
café da rua estreita, não sei se conheciam este pequeno estabelecimento. Se
calhar não! Quase de certeza de que não. Foi então que comecei a ficar
preocupado. De repente, constatei que não tenho mais nenhum bar na minha zona.
Mas agora é tarde para começar a ralar-me. O proprietário já lá vai e nem
quer que lhe falem da sua (má) experiência na hotelaria.
Será que ainda vou a tempo de
evitar que encerrem outras casas comerciais cá no meu bairro? Sim, o melhor é começar já.
É que lembrei-me agora: eu também sou comerciante e provavelmente irei a
seguir.
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"NA Rua da Moeda de nariz no ar"
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"Elegia ao homem do café (1)"
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1 comentário:
Excelente texto baseado em Bertold Brecht. A solidariedade não se apregoa, pratica-se. Hoje por eles, amanhã por nós. Parabéns pelo alertar consciências (adormecidas).
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