segunda-feira, 8 de abril de 2013

A GERAÇÃO MALTRATADA

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



 O homem que tenho à minha frente chora desalmadamente. Por arrastamento choro também. Tem 62 anos e desde miúdo que aprendeu a tratar o comércio por tu. Filho de pais muito pobres, nos arredores da cidade, o trabalho foi o único meio de angariar rendimento e sonhar com uma vida melhor. Com 12 anos, por volta de 1960, começou a labutar numa mercearia ali para os lados de Santa Clara. Entre segunda e sábado, percorria os cerca de uma dúzia de quilómetros a pé, ida e volta, entre a aldeia e a cidade. Naquele tempo só havia dois feriados no ano: dia de Páscoa e de Natal. Na véspera deste dia do nascimento de Jesus, as vendas de géneros alimentícios, atendiam os fregueses até altas horas, quase até à missa do galo. Um dia, contou-me, num Natal do início do mesmo ano de 1960, por volta das 21h30, estava a arrumar as garrafas de gás para ir passar a consoada a casa, o telefone retiniu na loja do tendeiro. Era um cliente da Rua do Depósito, no planalto de Santa Clara, a pedir um litro de óleo para confeccionar as filhoses. Numa altura em que o cliente era o rei da massa e tinha sempre razão, o velho merceeiro e patrão, em face do pedido, logo se prontificou na sua satisfação e encarregou o marçano de imediatamente ir à prateleira retirar um litro de óleo e marchar em grande velocidade em direcção ao planalto. O petiz, cansado e farto de calcar e calcorrear as pedras da calçada, maldizendo o freguês, as filhoses e a sina que lhe calhou em sorte de nascer pobre e ter de ser o burro de carga de todas as solicitações e saco de todas as marradas, foi à estante, por cima da tulha do açúcar, sem olhar para os rótulos, retirou uma garrafa que colocou numa mochila para o efeito, e partiu desalentado em busca do cumprimento da ordem dada. Meia hora depois estava a entregar a encomenda à dona da casa, lá na parte alta da cidade, e, como boomerang predestinado ao regresso, fez novamente o caminho inverso na orientação da casa do bacalhau ao quilo. Encontrou o velho merceeiro à porta, colérico e completamente fora de si, com um cacete na mão e a gritar: “meu filho de uma figa! Desgraçaste-me o negócio! Então levaste um litro de petróleo?! A senhora queimou as mãos, meu desastrado!”
Dali, da casa dos fiados, sempre a subir nos dias, partiu para outro negócio e outro e outro até ir para a tropa. Quando deixou o serviço militar casou com a sua namorada de muitos anos. Foram viver para uma casa muito velhinha, lá na aldeia. Mas, noite após noite, o nosso homem antes de adormecer elaborava mil planos para sair do patamar da pelintrice. Mas como? Interrogava-se em solilóquio sem fim. A mulher era costureira e ganhava pouco, que mal dava para as linhas. Ele continuava a trabalhar numa casa comercial na cidade e o ordenado, para além de ser quase invisível, parecia líquido, porque se esvaía por entre os dedos. Mas a fé em dar o salto, assente numa vontade férrea, minava o seu dia e a penumbra. Os seus pensamentos, como andorinha a cruzar o céu primaveril, eram apenas preenchidos com uma mensagem: “eu sou capaz! Eu sou capaz! Vou vencer!”
Um dia, por volta de 1980, soube de um pequeno quiosque numa entrada de um prédio que estava em trespasse. Foi falar com o dono e acertaram o preço. Porém havia um problema: faltava o dinheiro necessário. Foi falar com um amigo e, dividindo o investimento pelos dois, depois de correrem Seca e Meca a arranjarem financiadores, sem rede, como kamikase suicida a atirar-se para a frente em defesa da causa nobre, lá abriram o comércio. Durante anos e anos foi comprar e vender até altas horas da noite, sem tempo para deprimir e muito menos para dormir. Como recompensa de Deus, o negócio floria como rosa em terra fecunda. Vieram os filhos, crescendo sem pai, estudaram e chegou o dia em que foram admitidos na Universidade. E o nosso sonhador desfez-se em lágrimas de prantos sofridos. Estava a dar aos seus o que não lhe fora oferecido pelos seus ancestrais. Sentia um contentamento indescritível. Ali, naquela conquista escolar que tanto significado tinha para si próprio, os seus herdeiros eram a extensão de si mesmo. Constituíam a projecção e a realização de tantos sonhos martelados em noites de lua cheia e de vazio quarto-minguante.
No início da década de 1990 já era proprietário de três estabelecimentos e detinha meia dúzia de funcionários ao seu serviço. A venda de produtos caminhava de vento em popa. Adquiriu o seu primeiro automóvel a estrear, a seguir uma vivenda num bairro chique limítrofe da cidade. Em meados da mesma década comprou uma casa na praia. Veio o virar do milénio e o futuro estava garantido, pelo menos era assim apregoado pelos políticos da altura e pelo crédito anunciado pelos bancos. Veio 2001 e o abalo causado pelas torres gémeas. Aparentemente a economia continuava a rolar numa relativa normalidade. Nessa altura surgiu um bom negócio, na possibilidade de comprar uma outra vivenda com outras condições de bem-estar. O banco emprestava com a possibilidade de esperar pela venda da primeira. E o nosso homem comprou. Caiu o céu sobre a Europa e tudo descambou em catadupa. A primeira casa não se vendeu, outras complicações surgiram e as vendas decaíram a pique. E o comerciante que, ao longo da vida se atirou sempre sem rede e sem resguardo, num ápice estava cheio de dívidas. Há dias apresentou um pedido de falência. É único? Não, na nossa volta, há cerca de uma dúzia de profissionais que estão na iminência de dar o mesmo passo. Para o comerciante que agora pediu a insolvência –e para outros que lhe vão seguir- gostaria de deixar um grande abraço, apertado e de sentimento. Que não se sinta diminuído. Que não se deixe abater. Sei, porque conheço bem a sua história. Sei que fez tudo o que podia para levar o seu navio a bom porto. Não conseguiu. Mas não foi por falta de esforço e entrega à causa comercial. Uma grande, grande, salva de palmas para este meu amigo.



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