terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O HOMEM QUE PAPAVA LIVROS

(IMAGEM DA WEB)



 Tenho uma pequena loja de artigos decorativos e objectos usados e antigos na parte velha da cidade. Vendo -e compro, embora agora menos devido à recessão económica-, um pouco de tudo. Pode ir desde um brinquedo de lata dos anos de 1950 até um Gramophone do início do século XX. Assim como de épocas mais recuadas.
O estabelecimento tem também uma secção de livros. Como é normal em todos os tipos de actividade, também aqui há vários preços. No entanto, porque entendo que o livro é muito mais do que um simples objecto de culto –é um amigo, um mensageiro que nos traz sempre boas novas sem exigir nada em troca-, sempre tive um secção de títulos a um euro, isto depois da implantação da nova moeda.
É talvez aqui, nos livros, que, perante a grandiosidade da palavra escrita, noto uma sublinhada igualdade entre pessoas de vários extractos sociais. À mesma hora podem perfeitamente encontrar-se um sem-abrigo ou um professor universitário. Se para o primeiro a finalidade será apenas um relembrar de tempos idos, para o segundo pode significar a procura de um determinado livro ou autor específico. Entre eles, desabrigado e abrigado da sorte, existirá sempre um ponto comum: o vício da leitura. E outra particularidade: estas pessoas, habitualmente, devoram tudo o que adquirem. Será talvez neste ramo onde se notará uma maior dependência, talvez quase a cair na adição. Dentro desta classe de leitores compulsivos, poderemos talvez dividi-los em três grupos: temáticos, especialistas e generalistas.
Os leitores temáticos abarcam naturalmente um tema, uma linha de pensamento, uma especificidade de edição, um autor. Procuram algo que enriqueça a sua fome de saber, mas sempre numa linha de continuidade. Por exemplo se lêem literatura ou história, jamais se debruçarão sobre futebol, a menos que tal tese seja objecto de tratamento estilístico psicossocial. Jamais como notícia de vulgaridade de massas.
Os especialistas compram títulos apenas dentro de um determinado ramo específico para aperfeiçoar o seu saber erudito e intelectual, muitas vezes para teses de mestrado, consubstanciação de pareceres, nomeadamente em direito comparado.
Os generalistas serão então uma espécie de borboletas que pousam numa qualquer flor e desde que sejam atraídos pela cor, textura ou apelo dos sentidos. Normalmente, compram e lêem sobre uma multiplicidade de assuntos variados. Nem sempre consomem tudo o que compram, sobretudo quando a leitura se torna enfadonha. Têm uma cultura vasta de informação pela rama. Habitualmente não têm um conhecimento aprofundado das questões, mas pelo título, como sabem do que se trata, sempre que precisam, basta-lhes ir procurar o que necessitam ao sítio certo.
Pela minha alguma experiência de contacto com estes meus classificados três grupos, todos eles são distintos e raramente se misturam nas suas particularidades idiossincráticas. Mas há excepções e recordei-me desta prerrogativa há dias, em forma de saudação natalícia.
Durante muitos anos tive um cliente quase diário a comprar livros baratos. Ele tanto comprava sobre rubricas de matemática aplicada, como mecânica quântica, literatura, história universal, como outro qualquer item.
Parece-me estar a vê-lo a transpor a porta de entrada. Cabelos desgrenhados, barba hirsuta e vestido medianamente. Era daquelas pessoas que não tinham idade. Era um daqueles rostos impossíveis de determinar o ano de nascimento. Tanto poderia ter 40, como 50, como 60 ou mais anos.
Vinha sempre acompanhado com uma dama que lhe pagava as contas. Durante muito tempo pensei que eram marido e mulher. Só muito mais tarde vim a saber pela senhora que era seu filho único. Contou-me à época que o seu primogénito era de uma inteligência fora do comum. Ele lia tudo, mas absolutamente tudo, o que comprava. Ele sabia mais matemática do que ela, mãe, que fora professora desta área no ensino secundário. Muitas vezes ela não sabia chegar à solução para determinado problema e ele resolvia-o em três tempos. Como era dado a grandes crises de depressão e provavelmente não se conseguia inserir socialmente, nunca trabalhou. Só lia, lia, lia. Lia de dia, de noite, fizesse chuva ou Sol. Apenas saía à rua acompanhado da sua protectora.
Cumprimentava-me com uma voz adocicada e melosa, como se fosse um menino tímido, e ia directamente para a secção de livros, onde mexia, remexia, abria um, abria outro, durante largo tempo. A sua mãe, pacientemente sem um queixume, esperava que ele escolhesse três ou quatro livros.
Nunca se abria para conversas. Era afável mas não permitia grandes avanços na sua vida. Nunca cheguei a tratá-lo pelo nome próprio, que aliás, creio, nunca cheguei a saber. Também era despiciendo, era como se fosse o meu cliente distinto de leitura diária e tivesse estatuto especial. Passou a haver entre esta família e eu uma relativa amizade, fruto da sã convivência de todos os dias e quase sempre lhe oferecia uma obra.
Um dia deixaram de aparecer. Na altura estranhei, mas pensei que se tivessem mudado. Uns meses mais tarde recebi a visita da senhora completamente vestida de negro. O que aconteceu? Nunca mais a vi. Que é feito do seu filho? Interroguei.
Desmanchada em rios de lágrimas, balbuciou: “o meu menino morreu!”.
Nesta véspera de Natal, há dias, esta mãe sofrida em oceanos de silêncio, já muito velhinha, veio cumprimentar-me. Mais uma vez lembrámos o seu filho perdido precocemente. Mais uma vez, numa tristeza profunda de dor como só uma mãe sente, entaramelada com lágrimas, exclamou: “faz-me muita falta. Era a minha companhia. Não tenho mais ninguém. Que privação sinto do meu Emanuel…”.


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