Nesta segunda-feira de pascoela,
dia primeiro de Abril, pela hora do almoço, a Baixa, como rio calmo que apenas
transborda as suas margens quando a água lhe chega ao nariz, discorre
pachorrenta num vale de lágrimas, em modorra de nem lá vou nem faço nada. Com as lojas comerciais maioritariamente
encerradas –porque o comércio esteve aberto na Sexta-feira Santa-, os turistas
certamente endinheirados, mesmo sem vontade de comprar seja lá o que for, como
almas penadas num purgatório de prazo anunciado, vagueiam em magotes
arrebanhados a mirar os monumentos mais identificativos de uma história alheia,
que os portugueses ignoram e não querem saber e os estrangeiros procuram
avidamente.
Na Praça 8 de Maio, como melga em
torno da sua presa, um actor
profissional da pedincha –com um excelente desempenho, diga-se a propósito-,
provavelmente romeno, contorce-se todo de forma magistral. Aquele homem é um
espectáculo! Sempre que o vejo a calcorrear, ou melhor, a arrastar os pés pelas
pedras da calçada e com tremuras numa das pernas, tento imaginar as longas
noites perdidas a treinar a performance. A verdade é que este sujeito apresenta
um trabalho tão brilhante que, estou convencido, poucos suspeitarão de um
embuste. É de supor que será tão natural e de tal modo a colagem da imperfeição se confunde que, em simbiose perfeita, acredito, pela força do hábito, mentalmente, este homem já terá
assumido ser mesmo deficiente. Pergunto-me tantas vezes por qual a razão de
pessoas como esta, com um talento inato, não serem aproveitadas para o teatro e
outras artes cénicas. É certo ser muito difícil conseguir a sua colaboração.
São indisciplinados e não alinham em regras. Apesar disso, considero que jamais
alcançaremos uma sociedade perfeita, mas enquanto se desperdiçarem aptidões
como esta pelos becos vadios dos lugares habitados tenderemos sempre a viver
numa sociedade injusta, pobre e mal-agradecida, que não aproveita os melhores
mas sim os que, no labirinto da fama, sabe-se lá de que maneira, conseguem
almejar a luz.
Em frente ao café Nicola uma
mulher de vinte e poucos anos está de cócoras, com as coxas ao léu, a fazer xixi. Como animal perdido, mostra um quadro primário. A urina amarelada,
alheia a quem a pisa, escorre em liberdade pela pedra branca. Poucos se
aperceberam da rapariga. Nem mesmo a alvura das suas coxas chamou a atenção dos
homens para as suas carnes de volúpia escarnicada mas maltratadas por uma vida
tempestuosa dividida entre prazeres imediatos de custos alucinantes. Também
ninguém notou que a jovem tinha o rosto entre mãos, chorava copiosamente e
fazia-se acompanhar de um discurso desconexo pela força, provável, de efeitos
de uma qualquer droga, que, ingerida como antídoto para a infelicidade, ainda
lhe terá provocado mais desânimo, angústia e dor. Ao ser chamada a atenção para
a sua libertinagem e falta de decoro não soube responder. Num grunhido espalhado
ao vento, acompanhado no gesto de puxar as calças, virando costas a tudo e a todos
num desprezo sublinhado, foi juntar-se a um presumível companheiro do mesmo
sofrimento e esperança estrangulada. Abraçando-se –mostrando que o amor é a
solução imaterial para todos nos males do corpo e da alma-, meio titubeantes
como canas tocadas pelo vento no canavial, caminharam em direcção ao Largo da
Portagem. Nos seus olhos baços e sem brilho, como dois autómatos entrelaçados, foram
em busca da vertigem desta praça da recepção a quem chega e hall de entrada na
cidade, como se ela simbolizasse um paraíso perdido, um horizonte invisível de
expectativa no amanhã, que há-de ser melhor. Quem sabe?
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