Como tantas vezes, e diariamente,
cruzei-me com o Mário hoje à hora do almoço ali junto à igreja de São Tiago. De
repente, sem nada combinado, estamos a falar do lixo que estava mesmo aos
nossos pés e na falta de cuidado que os comerciantes da Baixa têm na estima que
deveriam ter (e não têm) pela zona onde ganham a vida. Ora, o Mário Garcia
Afonso é um reputado fotógrafo que, para além de estar ligado a várias
publicações, conhece a cidade por dentro e por fora. Ou seja, enquanto citadino
conimbricense, estando imbricado na massa populacional, consegue aperceber-se
dos defeitos e virtudes que a urbe suporta. Enquanto fotógrafo, como outsider, transcende-se e tem uma
percepção independente, tal-qualmente como se tivesse chegado hoje ao burgo no
comboio matutino.
E assim, sem nada programado, puxo do bloco de
notas e toma lá Mário que estás a ser entrevistado para o blogue Questões
Nacionais. Aqui vai:
“A cidade está de cócoras para a
Universidade e de joelhos perante a Rainha Santa. A sabedoria está lá em cima,
presume-se, mas não mata a fome aos residentes na cidade. Rezar à Padroeira a
mesma coisa: também não retira a sensação incómoda do estômago. Consequência
disso? Tudo o que Coimbra tem agora as outras cidades também tem, mas com uma
diferença: não deixam cair o seu comércio como aqui. Olha aqui à volta… só
lojas encerradas. Mete dó ver isto! É preciso estimular o investimento. É
preciso colocar a cidade a trabalhar na criação de emprego. Lisboa é cada vez
mais como antigamente: está tudo lá centralizado e o resto é paisagem. É
interessante ver que Coimbra deixou de ter o peso que tinha. Deslocalizou-se
tudo para outras cidades vizinhas, como Aveiro, Leiria. A nossa cidade perdeu a
centralidade. Coimbra já foi a capital do reino. D. Afonso Henriques não
escolheu estar sepultado em Santa Cruz por acaso. Aqui decidiu deixar os seus
restos mortais porque reconheceu as potencialidades de Coimbra. A dimensão do
país, sendo pequeno, acaba por ser redutora. Todos os serviços, na decisão,
estão centralizados em Lisboa. Falta generosidade às pessoas de Coimbra, e
outros que vieram de fora e aqui se estabeleceram, ganharam a vida,
conquistaram estatuto. Alguns só dizem mal e não se movem um milímetro para
mudar seja o que for. Sangraram a cidade e agora, que está nas lonas, estão a
abandoná-la. Falta cidadania activa e espírito crítico. Como quem está lá em
baixo, em Lisboa, têm uma visão global e redutiva da cidade dos estudantes. Pensam que isto é uma aldeia grande, que é uma localidade única. São Martinho,
Vale de Canas, Tentúgal, para eles é tudo Coimbra. Olham apenas para o todo sem
levar em conta os pormenores, a sua idiossincrasia. Esquecem que esta cidade
tem muitos polos de interesses diferenciados.
Ao ver como a cidade é tratada de
fora sinto-me triste, frustrado, impotente por não ter meios para mudar as
coisas. Coimbra perdeu importância por não ter dois clubes a militar na
primeira divisão. Ninguém se importa com a Académica. Para não falar do
completo desinteresse a que estão votados o Olivais e o Santa Clara, que já
foram grandes clubes de muita glória e agora ninguém fala deles. Deram grandes
alegrias à cidade. A cidade, nas pessoas que cá vivem, não dá valor ao seu
passado, à sua história, que, no fundo, é a sua essência, a sua alma. Sem
roturas, gostava que no geral o comércio se revitalizasse. Dói-me o coração ver
esta Baixa assim. Gostava de ver a pouca indústria que a Lusa Atenas tem a produzir,
a criar emprego. Por exemplo, gostava de ver a Fábrica da Cerveja (Topázio e
Onix), na Pedrulha, transformada num pólo museológico. Porque foi abandonada
daquela maneira? Será que não vêem que ali está a nossa alma? A Câmara
Municipal deveria ter um papel preponderante na divulgação da memória da
cidade. Não pode continuar a perder de vista o essencial e dar demasiada importância
ao acessório.
Aqui na Baixa, não vale a pena
continuar a reconstruir as fachadas sem recuperar o miolo dos prédios –isto é
um modelo que grassa em todas as cidades do país. Está mal. Se calhar é o
paradigma dos portugueses: mostrar apenas a frente e esconder as traseiras.
O que se está a passar nestes
centros urbanos deveria fazer pensar. Num completo abandono, deixa-se esboroar
o que resta para depois ser comprado ao desbarato. Depois da recuperação do
edificado assistimos ao aburguesamento. Quem para cá vem viver não tem nada a
ver com quem aqui nasceu e sempre viveu. Estão a tirar a alma aos centros históricos.
Retiram os traços populares. Enfim, mas noutra impossibilidade, ao menos que restaurem
isto. Acredito na recuperação da Baixa, da Alta e da zona de Santa Clara –todos juntos,
verdadeiramente são o Centro Histórico da cidade. Mas, se calhar, só vou ver
esta mudança para o tempo dos meus netos… se cá estiver. Sei lá?!”
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