terça-feira, 24 de novembro de 2009

OS TEMPOS QUE VIVEMOS





I
Era uma vez um rio, chamava-se comércio tradicional. Este curso de água tinha um caudal constante. Era imenso, atravessava o país de Norte a Sul. Como todos os rios, este, naturalmente, ia desembocar ao mar.
Ao longo das suas margens, as profissões decorrentes de séculos iam desenvolvendo as suas actividades, tais como, por exemplo, os pescadores, os agricultores, os industriais, todos os artesãos ligados ao saber fazer de antanho.
Havia queixas constantes acerca do percurso do comércio tradicional. Diziam que era acomodado, pouco desenvolvido, que não servia bem o mundo dos consumidores –este universo de compradores era um deserto ávido de modernidade, sequioso de coisas novas. Estava farto de quem pregava a defesa do curso natural do rio. Queixava-se permanentemente desta infra-estrutura, desta relação dialéctica do homem com a natureza através do trabalho e punha em causa as relações de produção entre proprietário e operário.
Era preciso alterar esta modorra, esta estrutura, este sistema produtivo que até àquela data tinha produzido demasiadas iniquidades e estava muito aquém do bem-estar desejado. Embora houvesse concorrência, esta não era eficaz, ou seja, alegava-se, não trazia muitos benefícios para o deserto dos consumidores. Dizia-se que este caudal estava demasiado concentrado, a sua competição era pouco planeada e, embora o lucro fosse estabelecido pelo Estado, os preços eram altos. Funcionava quase em sistema de economia fechada.

II
Para melhor situar a história no tempo, digamos que estamos em finais da década de 1980. O país, poucos anos antes, tinha aderido a uma comunidade económica chamada CEE. Para ajudar no desenvolvimento económico/social, começaram a entrar vários milhões em subsídios.
A pirâmide social estava representada da seguinte forma: no vértice, e a ocupar um terço, estavam os mais ricos, os eleitos, e deteriam cerca de metade da riqueza nacional. A ocupar outro terço, presumivelmente estariam os nobres, aqueles que viviam desafogadamente. E outro terço seria ocupado pelos mais carenciados, os burgueses, os pescadores, os camponeses, enfim, toda a plêiade que constituía a força do trabalho. As desigualdades entre a última e as duas classes superiores da pirâmide eram abissais.
Os sectores produtivos essenciais, como, por exemplo, a banca, a energia, os combustíveis, as telecomunicações, os transportes, os cimentos, estavam nacionalizados desde uma revolução, uns anos antes, que levara a uma mudança de regime político.
Nesta altura, o então governo, depois de outros, perante tantas queixas, em nome de um conforto social mais equitativo, e obrigado pelas novas directivas da comunidade de vários países vizinhos, para além de desnacionalizar os sectores mais importantes da economia nacional, alterou o curso do rio do comércio tradicional. Em vez de ir desembocar no mar como todos os outros cursos de água, estipulou-se que iria desaguar no deserto dos consumidores. Ainda que em paradoxo se apregoasse que era a livre concorrência que estava por detrás destas medidas, agora este caudal passaria a ser controlado. Ou seja, até aqui, a torrente era composta por átomos dispersos. A partir desta altura, começaram a gerar-se moléculas combinando a associação de vários átomos na torrente comercial.

III

Por sua vez, por força da teoria da vantagem absoluta de produção –que consiste na especialização de cada país produzir apenas os bens que tem mais vantagem e que fiquem mais baratos nos custos de produção- e das directivas comunitárias, para além de se planear outro tipo de culturas, recorrendo ao abate de oliveiras, vinhas, árvores de fruto, começou-se a aposentar compulsivamente os agricultores. Nas pescas, para além de se aniquilar de vez com a construção naval, abateram-se centenas de unidades de frota e subsequentemente os seus armadores. Na indústria, com o argumento de que era pesada e não compatível com os novos modelos ambientais, encerraram-se grandes fábricas de transformação. Aos poucos, as margens do novo curso do rio comércio tradicional foram ficando desertificadas.
Com o provocado declínio das forças produtivas, progressivamente, assiste-se à terciarização da economia. Há uma deslocalização massiva dos trabalhadores dos sectores primário e secundário, da produção, para os Serviços e sobretudo para o Comércio. Todos embarcam no caudal do novo rio em direcção ao deserto de consumidores.
Estava em marcha a sociedade pós-industrial.

IV

Seguindo o novo traçado do rio, chega-se então ao seu desembocar no deserto dos consumidores. Aqui, assiste-se a vários fenómenos: o primeiro foi o aumento desmesurado do consumo (consumismo). Através do marketing arrojado, de uma máquina infernal, criadora de falsas necessidades, criou-se um novo tipo de doença: a oneomania (a adição compulsiva de consumir). Perde-se a noção de limites: comprar, comprar, comprar!
No segundo momento, assiste-se à multiplicação e concentração de moléculas na oferta. Por outro lado, aposta-se na concentração, racionalizando os custos, e no esmagamento de preços no consumidor final. Ou seja, por cada nova molécula emergente iam morrendo vários átomos. É assim que praticamente, desapareceram todas as mercearias, lojas de electrodomésticos e supermercados. Aos poucos estas moléculas foram engordando. Recorrendo à economia de escala, integrando verticalmente e horizontalmente vários géneros de actividades diferenciadas, conseguem preços impossíveis de competir pelos pequenos átomos. Como os preços baixam, assiste-se a uma democratização do consumo. Isto é, os bens de primeira necessidade e os supérfluos passam a fazer parte de todos os lares portugueses.

V

Assiste-se a um novo fenómeno: há um aumento brutal de consumo, que, por sua vez, leva a um crescimento avassalador do Produto Interno Bruto –ainda que falacioso, por força da riqueza nacional estar a ser inflacionada pelos milhões entrados durante décadas e vindos da Comunidade Europeia-, mas que contribui para uma maior igualdade social, no seu benefício comum de bem-estar. Diluem-se as desigualdades e emerge uma nova classe média forte. Aumenta o capitalismo na Macroeconomia.
Por outro lado, assiste-se a uma desbragada procura interna, que os meios de produção nacionais, ao longo das últimas décadas desmantelados, não conseguem satisfazer. Recorre-se cada vez mais às importações, até mesmo nos produtos que outrora fomos excedentários como o azeite, sal, arroz e outros produtos agrícolas, inclusivamente citrinos. Obviamente também no pescado. A qualidade dos bens alimentares diminui cada vez mais, recorrendo-se a químicos e a hormonas para abastecimento rápido do mercado. Em consequência, aumentam cada vez mais as doenças do foro cancerígeno. A despesa do Estado com a saúde é cada vez mais avassaladora.
Acumula a dívida pública com o exterior. As importações de produtos de péssima qualidade, mas dentro dos parâmetros exigidos, excedem em muito as exportações.

VI

Fruto da globalização e da ratificação de acordos com a Organização mundial de Comércio de livre produtos, assiste-se à deslocalização de empresas para países do Oriente de mão-de-obra barata. Começa-se a produzir os bens nestes países para serem consumidos na Europa, contribuindo assim para a desocupação no velho continente. Este é invadido com lojas chinesas, com produtos de péssima qualidade, mas baratos.
Encerram diariamente, nos países da comunidade, dezenas ou centenas de pequenas lojas de artigos nacionais.
Crescem assustadoramente as depressões e todas as doenças similares do foro psiquiátrico.
Multiplica-se o desemprego em flecha. Assiste-se cada vez mais à concentração de grandes empresas. A liberalização é total. Apesar de serem criadas várias entidades reguladoras, estas, aparentemente, não funcionam e os consumidores são cada vez mais joguetes nas mãos destas empresas em oligopólio.
Os consumidores, massa abstracta compulsiva, fruto também da depreciação económica, começam cada vez mais a optar pelo mais barato, contribuindo com esta escolha para enterrar as poucas indústrias nacionais que até agora resistiram e que produziam artigos de qualidade.

VII

Assiste-se ao total desaparecimento da classe média. A pirâmide social divide-se agora em três grupos: no vértice, talvez vinte por cento da comunidade social, os grandes grupos económicos, a tomarem conta dos destinos do país, os grandes herdeiros de fortunas, directores gerais e políticos profissionais; a meio da tabela, a outrora classe média, constituída por funcionários públicos de quadros médios, trabalhadores por contra de outrem do sector privado, pequenos comerciantes e industriais, artesãos, talvez aqui sejam sessenta por cento, e completamente endividados; no fim da pirâmide social, na base, os reformados, os desempregados de longa duração e os usufrutuários do Rendimento Social de Inserção, os mais carenciados.
Constatam-se enormes assimetrias na sociedade, sobretudo com artistas a ganharem numa hora o que um operário médio auferirá durante uma vida inteira. Verifica-se o surgimento de uma pobreza envergonhada e à emergência de novos excluídos disfuncionais. Cresce diariamente a insegurança interna, provocando a desmotivação em quem gera riqueza.
Os novos escândalos em torno da corrupção, envolvendo figuras gradas da política, e o descrédito na justiça, leva ao aumento da abstenção nas eleições, factor decisivo para uma nova vida democrática, e a um desprezo generalizado pelo topo da pirâmide, sobretudo a classe política.
Está em curso a tensão dos extremos de que falava Nietzsche. O tal estado de necessidade de Revolução, para mudança de paradigmas societários, à procura de um universo mais justo e equilibrado.

3 comentários:

Anónimo disse...

Ora bem:
1- O texto só será longo pra quem não goste de ler ou destituido da mais elementar capacidade de perceber o alerta social e cultural que alguns de nós fazemos...
2- Não vou dizer que está muito bem escrito, porque quando assim se escreve.. essa é a última coisa que nos apetece ouvir
3- Pelo que atrás te disse, devo acrescentar que a observação feita ao estado a que chegámos está de uma lucidez que até dói...e dói porque é real e verdadeira para quem acompanhou desde a decada de 80 ao esbanjar dos dinheiros recebidos, à emergência de uma nova elite de novos ricos e ao empobrecimento não aparente( visivel) dos estratos sociais que referiste...É com imensa tristeza que vejo o nosso País em apuros e sem se vislumbrar uma solução a médio prazo, porque a curto serão só remendos, ilusórios.. que terminarão com as megalomanas obras que por certo irão ser feitas ( algumas) que assim calarão as grandes empresas de Construção Civil e todas as que lhes estão naturalmente associadas...do comércio tradicional... não sei como farão... a indústria... finou-se e as pescas...nem comento. A agricultura talvez, talvez volte a ter alguma importância... E assim vamos nós ... a caminho do NADA!

Anónimo disse...

o anónimo sou eu madalena do netlog :))))

LUIS FERNANDES disse...

Eu sei Madalena. Obrigado pela tua generosidade.
Volta sempre.