sexta-feira, 16 de setembro de 2011

EXPULSO DA SUA PRÓPRIA TERRA





 A casa está toda em rebuliço. Vários caixotes de papelão já estão cheios e outros aguardam vez de servirem de resguardo a muitas recordações materializadas nos objectos. Nesta função repetida de embrulhar louças e outros acessórios, de vez em quando Matilde pára e vai até à janela. Daquele terceiro andar, no Beco das Condeixeiras, paralelo à Rua Borges Carneiro, na Alta de Coimbra, avista-se todo o casario entre a Sé Velha, a Baixa e Santa Clara. E Matilde, de 64 anos, chora desalmadamente. As lágrimas, como águas livres em planície inclinada, correm sem pedirem licença.
Carlos Alberto, o marido, de 67 anos, porque sabe, sente, e entende o que a mulher está a passar, coloca-lhe a mão por cima dos ombros e envolve-a num terno abraço. Num daqueles enlaces que só o tempo martelado de duas pessoas que sempre se amaram explica o cimento fluído que os liga em quatro décadas de casamento em comum.
Vivem na Alta há 36 anos. Conhecem cada ruela e beco da mesma forma que se adivinham um ao outro. Cada pedra da calçada que serpenteia qualquer rua do Centro Histórico já foi calcada por eles. Sabem os nomes de todos os moradores que há várias décadas teimam em ter por companhia as lajes milenares da Sé Catedral e que num silêncio impossível murmuram cânticos de amor.
Ali, nas traseiras do Museu Nacional de Machado de Castro, nasceram as suas duas filhas, hoje feitas mulheres. Uma delas está em Lisboa.
Se há uma dezena de anos interrogassem Carlos e Matilde onde queriam acabar os seus dias, ambos, em uníssono, como duo afinado, responderiam: “aqui. Aqui mesmo neste recanto encantado da Alta da cidade!”

UM POUCO DE HISTÓRIA

 Nos últimos 15 anos a vida em comunidade, a pacatez de modorra no velho bairro salatina alterou-se profundamente. Talvez resultado da facilidade de crédito para adquirir casa, ou não, a verdade é que os filhos mais novos, como conquistadores à procura de novos mundos, deixaram os pais e foram abandonando toda a zona em torno da Universidade. Numa metamorfose quase perfeita ficaram os mais velhos, agarrados à memória, a viverem em prédios centenários, muitas destas casas à espera de uma salvadora revolução no arrendamento que permitisse dar uma nova identidade a todo aquele edificado. Muitos daqueles edifícios, outrora pejados de famílias, deram lugar a arrendamento de quartos a estudantes e o ambiente, outrora familiar e pacífico, foi-se tornando progressivamente mais agreste.
Sempre houve estabelecimentos de hotelaria no perímetro em torno da Sé Velha. Na década de 1970 eram célebres as reuniões revolucionárias no café Oásis. Quase em frente, ao cimo das Escadas do Quebra Costas estava o café do Barão -hoje café Sé Velha- que explorava também uma agência funerária. Mais acima, na Rua dos Coutinhos, estava o “self-service” do Américo Pessoa. Mais abaixo, na Rua Joaquim António de Aguiar, era o restaurante do Serra que servia umas refeições em conta e acompanhadas com bom vinho.
Em 1987, um ano depois da adesão de Portugal à então CEE, pela ADAAC, com Mário Nunes como presidente, realizou-se o primeiro congresso internacional sobre património e com o lema “Alta que futuro?”. Fosse por esta razão e também pela nova vida vinda da Europa ou não, a verdade é que este até aí adormecido bairro antigo, de repente, como acordado de um longo sono letárgico, ganhou vida como corcel a galope e veio colmatar a transferência do velho hospital para o novo edifício dos HUC, em Celas.
A imitar o Bairro Alto em Lisboa, vieram os bares da noite. O primeiro foi o “Quebra-Costas”, aberto pelo Albertino, e a “Tasquinha”, ambos nas Escadas de Quebra-Costas. A seguir foi o “Sacristia”e o restaurante Trovador, no Largo da Sé Velha, e ao lado na Rua do Cabido, o bar Boémia; depois foi o Marquês da Sé, também no velho largo; a meio da Rua Borges Carneiro, abriu o restaurante do Lucas; ao fundo da Rua Joaquim António de Aguiar, junto ao Governo Civil, abriu outro café e ainda outro junto à República do Praquistão; junto ao Arco de Almedina abriu uma galeria com café; mais acima, em frente à “Casa das Canetas” abriu portas outro pequeno restaurante. Ainda durante a década de 1990 abriu o “Bigorna-bar”, na Rua Borges Carneiro.
Nesta altura, por volta de 1990, a Sé Velha estava na moda. Era o centro de confluência de toda a juventude na cidade. O horário máximo de abertura era as 2h00. Naturalmente que onde houver bares da noite em zonas habitacionais haverá sempre tensões entre moradores e os ruídos provocados por estas casas de animação citadina. Sem grandes tiradas filosóficas, sabe-se que, residentes e hoteleiros, como dois pratos numa balança, ambos são necessários, desde que se harmonizem os interesses das duas forças em contraposição para um justo equilíbrio na paisagem urbana. É preciso é que nenhum dos pratos se incline demais em relação ao outro.
Apesar deste aumento desmesurado de casas hoteleiras e muito tráfego no Largo da Sé, ainda que com conflitos mínimos, todos viviam felizes. Os moradores, com o movimento na noite, sentiam mais alguma segurança e os empresários, com alguma sensibilidade à mistura, lá iam tratando da vida.
Até aí, os carros que transitassem da Alta para a Baixa atravessavam o largo empedrado em direcção ao Governo Civil. Por outro lado, muitos bancários, durante o dia estacionavam em redor da catedral e vinham a pé até à Baixa. Com esse exercício davam movimento aos estabelecimentos em redor.
Em 1995, fruto de um estudo apresentado à autarquia, o sentido do trânsito automóvel foi alterado profundamente. Os automóveis passaram a tomar o largo como centro de atracção. Isto é, toda a circulação em redor convergia para a Sé Velha e deixou de poder ser atravessada pelas viaturas livremente e, se com esta medida, ganharam os peões, perderam todos os estabelecimentos de hotelaria, incluindo os nocturnos. Progressivamente foram fechando muitos deles e o Largo da Sé Velha, pela falta de pessoas, foi perdendo vida. Todas as pequenas lojas de pequenos móveis desapareceram e deram lugar ao artesanato. Fechou a única farmácia; encerrou uma mercearia; encerraram duas tipografias; claudicou um quiosque de jornais e revistas. Para piorar, deslocalizou-se o Conservatório de música, que funcionava num velho edifício sem condições. Encerrou o Museu Nacional da Ciência e da Técnica, na Rua dos Coutinhos.
Entretanto, pelas leis da vida, foram morrendo os residentes mais antigos e os prédios anteriormente ocupados por estes foram dando lugar a estudantes universitários.

A VIRAGEM DO MILÉNIO

 Por altura do ano 2000 a Sé Velha atravessava o deserto, com menos casais novos a morarem e, por menos estabelecimentos que entretanto tinham cerrado portas, pouco movimento na noite. É então que o largo milenar, aos poucos, vai ganhando um pouco mais de movimento parecido com outrora. A velha farmácia deu lugar a um bar; na Rua Borges Carneiro, para além do “Bigorna”, abre outro bar. Recentemente, e após muitos anos encerrado, reabriu o antigo “Sacristia” com outro nome.
Trabalhar com estudantes durante a noite nunca foi fácil, sobretudo quando o álcool já lhes tolda o espírito. Ao que parece, talvez fruto da mudança de costumes, perda do respeito dos mais novos em acatar algumas repreensões dos mais velhos; estes, de certo modo, também desonerando-se da sua responsabilidade de intervir na defesa dos usos, a que chamamos hábitos de educação; aumento da sensação de impunidade que os mais novos sentem, sobretudo quando alcoolizados; incapacidade legal das polícias em poderem intervir no dirimir de conflitos e também perda de respeito dos jovens por esta, levou a que, segundo depoimento de vários moradores, o ambiente na Alta, actualmente, seja, durante a noite, uma espécie de “vale tudo na terra sem lei”.
Para contribuir para esta situação, directamente, está o facto de a autarquia, incompreensivelmente, licenciar todos estes bares até às 4 da manhã –cuja clientela permanece nas ruas até às 6h00, ainda segundo os residentes. Mais ainda, sempre que é solicitada a PSP para colocar fim a atritos, esta polícia, de uma forma incapacitante para os seus agentes e para quem os requer, nada pode fazer –isto mesmo foi afirmado pelo Comandante Distrital desta força numa recente reunião na Alta.

E PORQUE VÃO PARTIR O CARLOS E A MATILDE?

 Com um ambiente cada vez mais inóspito e em deterioração, ano após ano, em Março de 2007, em nome da Administração do Condomínio, Carlos Alberto faz a primeira exposição a todas as forças vivas da cidade: Presidente da Câmara Municipal de Coimbra; Presidente da Assembleia Municipal; Presidente da Junta de Freguesia da Sé Nova; Comandante da PSP; e a todos os grupos com assento parlamentar na cidade. Nenhuma destas entidades se dignou responder.
Nesta exposição eram descritas as sevícias que todo o prédio de três andares estava a sofrer por parte dos “estudantes de Curso Superior de Vandalismo”. “Pintura de paredes; destruição de retrovisores e os limpa-parabrisas; carros riscados; vidros dos prédios partidos; arremesso de garrafas vazias contra as paredes a alta horas da noite e ficando as ruas pejadas de vidros; tocar de campainhas por divertimento; furto de placas de sinalização e reclames comerciais. “Como se fosse pouco, a partir das 3h00 da manhã batem com paus em chapas de ferro e fazendo acordar todos”.
Escrevia ainda na altura, em nome do condomínio, Carlos Alberto Pereira da Silva que “Se telefonarmos de madrugada para a esquadra da PSP a informar o que se está a passar, obtemos como resposta “que de momento não temos agentes disponíveis”.
Nesta altura de 2007, perante a falta de socorro, ameaçava o condomínio formar uma milícia na zona para pôr cobro a esta bandalheira.

E DE 2007 PARA CÁ?

 Segundo Carlos e Matilde, de ano para ano, o ambiente tem vindo a degradar-se de uma forma assustadora e brutal.
Para além do que era descrito em 2007, nos últimos tempos até ameaças de morte o casal recebeu por parte de noctívagos. O facto de, todas as noites, o interior do seu prédio ser palco de sexo ao vivo, local de chuto e depósito de seringas, e casa-de-banho improvisada, levou a construir um portão em ferro que cerceia a entrada de intrusos durante a noite.
As depressões, alegadamente por falta de descanso nos moradores da zona, são uma constante. Para piorar, Matilde é asmática e diabética e não pode ingerir medicamentos para dormir.
No passado dia 6 de Setembro, último, uma nova exposição seguiu para o Presidente da Câmara Municipal de Coimbra. Porém, devido à falta de fé de que haja resposta, pela idade, pelo cansaço físico e anímico, a família Pereira da Silva considera ter sido enxotada da sua própria terra e por isso mesmo, perante o situacionismo, a omissão e a apatia, claudicam e vão viver para Lisboa.


(O EDITOR FOI PROPRIETÁRIO DO CAFÉ SÉ VELHA, AO CIMO DAS ESCADAS DE QUEBRA COSTAS, NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE 1982 E 1994)


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1 comentário:

Maria Helena Dias Loureiro disse...

O que me espanta, sobretudo nos últimos anos, quando a farra passou a ser diária e não só às 3ª e 5º feira, é não haver uma movimentação popular, um levantamento, uma onda de indignação relativamente ao cheiro nauseabundo a urina e vomitado, ao piso a colar com tanta porcaria, fora os cacos das garrafa; aos berros, aos insultos, aos palavrões pela noite dentro; ao parque da cidade e ajardinado da Portagem anualmente destruídos; aos vidros e montras partidos; aos comerciantes que têm de vedar com tesa-film as portas em vidro para não terem as lojas inundadas de urina. Tudo em nome da tradição claro.
Ah e o senhor vereador Paulo Leitão diz hoje no DC que tem de haver "compaginação de interesses". Quem lhe desse com um pano encharcado nas ventas!Ou então passar a viver nas ruas da alta, ou então até lhe alugo um quarto aqui na Baixa para ele ver o que é "compaginar" os interesses de quem trabalha e precisa de dormir, quem tem crianças pequenas a tentar dormir e os interesses de quem faz de conta que estuda.