sexta-feira, 2 de abril de 2010

BAIXA DE COIMBRA: QUINTA-FEIRA SANTA, 23 HORAS, 7 GRAUS CELSIUS, TEMPO SECO




É Quinta-feira Santa. São 23 horas e o tempo, embora ligeiramente frio, está seco e convida a passear.
Nas ruas estreitas, naquelas vielas medievais que foram pensadas para passeios pedonais e carros de tracção animal, estão semi-desertas. Aqui e ali, volta e meia lá passa uma pessoa ou um grupo de espanhóis. Pela sua alegria, em contraste com os portugueses, e pela sonoridade da língua de Cervantes, apercebo-me que, apesar do tardio da noite, “nuestros hermanos” andam pela Baixa em magotes familiares.
No Largo do Poço, o Salão Brazil, remando contra maré, na boa vontade do Telmo, o proprietário, continua a apresentar espectáculos de jazz e a tentar contribuir para a revitalização de uma “baixinha” que está amorfa e adormecida. À entrada, no rés-do-chão, vêem-se alguns jovens a cavaquear.
Na Rua da Fornalhinha, uma transversal da Rua Eduardo Coelho, na pequena entrada da sapataria do senhor João, avisto um saco-cama com uma pessoa a dormir dentro. Aponto a máquina e disparo. O flash acorda o locatário do saco. Levanta a cabeça com ar surpreendido. Boa-noite, cumprimento. Então não tem onde dormir? Interrogo. É o “João”, é mulato de Angola. Tem 39 anos. Trabalhou muitos anos na Garagem Avenida –ali em frente à Escola de São Bartolomeu. Depois o prédio entrou em obras e noutras funções e o João nunca mais arranjou emprego. Vai dormindo onde calha. Hoje calhou aqui, conta-me.
Então mas sabe que, se quiser, pode ser accionada a linha 144, e arranjam-lhe imediatamente um lugar para o senhor dormir…a Casa-abrigo ou o Farol…o senhor sabe? “Sei. Já estive lá na Casa-abrigo, mas chateei-me lá com um fulano e saí”, responde-me.
E onde vai comer? Pergunto. Sabe que, se passar fome, é possível ir comer à Cozinha Económica? Lá come-se muito bem, exclamo. “Já lá fui muitas vezes, mas colocam muitos corantes na comida e dá-me cabo do estômago”. Então e onde vai comer, interrogo. “Vou ali ao senhor Fernando, ali na rua detrás”. Então boa-noite, despeço-me.
Mais à frente, no prédio das antigas Galerias Coimbra, um outro sem-abrigo dorme a sono solto sob uma manta de retalhos, como de retalhos será a vida do ocupante. Mesmo disparando duas vezes, a luz invasora não o acorda. Certamente dormirá na paz dos anjos.
Na praça do Comércio, ainda com os dois restaurantes abertos, o Praça Velha e a “Taberninha”, vêem-se alguns transeuntes. Aqui e ali a língua descompassada dos nossos vizinhos ecoa na velha praça. Um ou outro tira uma fotografia.
Entro na Rua das Azeiteiras. Vários restaurantes estão abertos, e todos com clientes. O que está mais composto é o “Giuseppe & Joaquim”, que dá também para a Rua da Sota.
Subo as escadas do Gato, um pouco ao lado, o Restaurante “Aeminium” tem vários clientes no interior. Encontro o Pedro, um rapaz que vi crescer na Alta, convida-me para beber um copo. Não aceito. Tenho pressa. “Boa Páscoa”, deseja-me o meu amigo.
No Largo da Portagem, apercebo-me de algumas dezenas de pessoas a passearem. Os cafés Montanha e Toledo preparam-se para encerrar.
As ruas da calçada, a Ferreira Borges e Visconde da Luz, apesar da hora mantém uma afluência interessante de pessoas a olharem as montras…algumas delas completamente às escuras.
Na Praça 8 de Maio, muita gente. Alguns entram e saem do Café Santa Cruz. Também a gerência deste velho café de memória deve merecer a nossa admiração. Continua, como ontem, a apostar em espectáculos de fado de Coimbra. Para se levar um navio destes a bom porto, no meio de tantos escolhos, não é fácil. Eu sei do que falo. Parabéns para o senhor Victor e todo o simpático pessoal deste magnífico estabelecimento que tanto engrandece a Baixa.
O Panteão Nacional e também igreja com o mesmo nome do ilustre café, certamente por ser “Semana Santa” e estarmos em período de Quaresma, está ainda aberta. Dentro do templo Românico, meia dúzia de pessoas estão de pé a orar.
Mentalmente, pergunto-me se esta igreja, a partir de agora e até ao fim do verão, não deveria estar sempre aberta durante todo o dia e mesmo entrando pela noite, aí até às 22 horas. Não deveria a Diocese de Coimbra partilhar e ajudar, através da fé, a revitalizar o Centro Histórico? É pagão e de princípios materialistas, mas é a praxis: a religião pode e deve servir de motor de desenvolvimento de uma cidade. Há duas semanas atrás, num domingo, estive em Fátima. Desde os lojistas até à hotelaria tudo trabalhava. Se lhes fossem dizerem para não trabalharem ao Domingo –porque é dia santo e tão contestado por largas facções de comércio- será que eles deixariam de trabalhar neste dia? Ora, então, especulando um pouco, por que é que Fátima é um centro de turismo religioso internacional e Coimbra nem sequer é ponto de referência no país? Com todo o respeito, Nossa Senhora de Fátima, de aparição recente, em 1917, é mais milagreira que a nossa Rainha Santa Isabel, que foi canonizada em 1625? Ou será porque a Diocese de Fátima mantém um marketing arrojado e Coimbra não? Por que raio é que se comemora apenas as festas da Rainha Santa na cidade de dois em dois e não todos os anos? Alguém já pensou que os órgãos directores da Diocese de Coimbra deveriam ir a Fátima tirar um curso de desenvolvimento regional para aplicar na cidade de Coimbra?
Se alguém que ler este post e conhecer o senhor Bispo de Coimbra, D. Albino Cleto, pode convidá-lo a reflectir sobre o assunto.

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