sexta-feira, 23 de setembro de 2011

BAIXA: O DRAMA DE MARINELA

(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)




 Marinela –rótulo fictício- é dona de uma pequena casa de pasto numa rua estreita da Baixa de Coimbra há cerca de uma vintena de anos. Tem cerca de 50 anos, mas as rugas no rosto, como gretas em terra árida necessitada de brisa húmida revitalizante, fazem supor já ter ultrapassado os sessenta.
Pelo seu olhar baço, sem brilho, tristonho, nota-se-lhe um imenso cansaço crónico. Quem sabe uma depressão que, lentamente, devagar como passo de caracol, se foi instalando no íntimo desta sofredora.
Marinela começou a romper a vida muito cedo. Iniciou tudo muito antes de qualquer um. Começou a trabalhar quase ainda andava de cueiros. Para fugir ao domínio do “pater familias”, seu pai, casou quando deveria ainda namorar. O trabalho para esta mulher passou a ser a roupa íntima que nunca larga. Para fazer face às exigências familiares, nunca viajou para fora do país. Quando a interrogam sobre a possibilidade de ir a Paris, sorrindo, a meio sorrir, responde: “qualquer dia… qualquer dia!” –no seu âmago sabe e sente que jamais cumprirá essa tão desejada promessa.
Nos últimos tempos passou a andar muito mais ensimesmada. O negócio corre mal. Trabalha em dobrado para conseguir metade de outros tempos. Os seus clientes são cada vez menos. Não têm dinheiro para mais do que uma sandes e uma sopa. Para tentar remediar o irremediável esta hoteleira vai baixando os preços das suas refeições. Já vendeu a “diária” a 6, agora está nos 5 euros. Em contrapartida, como se sentisse ser contrariada por decisões maquiavélicas, aumenta o custo do gás, sobem os géneros alimentícios no mercado, aumenta a luz, sobe o preço da água. E Marinela, sem que ninguém reconheça o seu esforço, transpira preocupação com seus botões. Em longos solilóquios interroga: “o que vai ser de ti, rapariga?”
Qualquer pequena decisão que tenha de tomar, no seu cérebro, passa a ser um grande problema. Durante noites mal dormidas os “e se eu vou fazer assim e acontece assado? E se eu vou reclamar e depois me encerram o estabelecimento?”. O medo tomou conta do seu diário. Às vezes, quando só, à noite, estafada, maltratada na alma, dá por si a falar para o espelho: “o que tu eras, Marinela, e naquilo que te tornaste! O que fizeram de ti, mulher!”. E uma lágrima furtiva teima em percorrer aquele rosto cansado de tanto lutar.
Há dias recebeu uma inspecção da ASAE. Alguém, em vingança, se foi queixar àquele serviço de actividades económicas de que as suas casas-de-banho cheiravam mal. Quando os agentes lhe apresentaram a denúncia, à frente deles, Marinela, chorou a bem chorar. Como é possível alguém, só porque não gosta dela, dar-se ao desplante de a ir acusar de porca? Isto dói muito a qualquer um. Os agentes, cumprindo a sua obrigação, viram bem que as retretes estavam de facto limpas e cumpriam as normas regulamentares. Mas, como é normal, já que estavam lá, tomaram de inspeccionar tudo, frigoríficos, data de validade dos bens alimentares, óleo da fritadeira, limpeza da cozinha. Estava tudo bem. É então que lhe pedem a inspecção do gás. E Marinela não tem o exigido novo atestado. “Não tem, porquê? Interrogam os senhores agentes. Podemos conceder-lhe uma semana para a senhora nos apresentar o certificado. Caso contrário o montante da multa é 250,00 euros", tentam amenizar. E Marinela, mostrando-se impotente, em sua defesa, explica:
-Senhores agentes façam o favor de ver o “Certificado de Conformidade”, emanado do Serviço Nacional de Bombeiros, com data de 1995.
Vejam aqui o meu “Seguro do Cliente Galp Gás”.
Façam o favor de ver aqui o contrato de instalação de rede interior para gás Natural estabelecido com a Lusitaniagás, S.A., com data de 2008.
-Pois, compreendemos –retorquem os agentes- mas, de facto, a senhora não tem o novo Certificado.
-Mas ó senhores agentes, esta nova legislação sobre o gás só é concedida se as botijas estiverem no exterior da fachada do edifício. Acontece que a minha fachada é em azulejos e classificada, logo, aqui no Centro Histórico, não posso mandar fazer um receptáculo no exterior. Por isso mesmo elas estão na parte lateral do estabelecimento. Claro que tudo se resolveria se a Lusitaniagás, que já tem uma conduta nesta zona, se prontificasse a estender o ramal até aqui. Acontece que, segundo a empresa, essa possibilidade vai ainda demorar muito. Como vêem eu requeri-a em 2008 -volta a sublinhar.
-Pois, compreendemos, mas não podemos fazer nada. Se entender exerça o direito de impugnação.
E Marinela não sabe o que fazer. Se contestar a multa pode triplicar, no caso de não lhe ser dada razão. “Pagar 250,00 euros numa altura destas é de facto complicado, mas se me triplicarem a verba como é que fico?”, pensa para si a mulher. É certo que eu estou em incumprimento, mas como é que posso satisfazer a obrigação legal se estou tolhida pela circunstância e não tenho meios? Não deveria a Câmara Municipal de Coimbra pressionar a empresa de gás para colmatar esta impossibilidade de cumprir a legislação? Será que o legislador teve em conta as partes velhas das cidades? Às tantas, sendo esta imposição uma transposição de uma Directiva da Comunidade Europeia, se calhar, nem viu que se está perante um “quid pro quo” –tomar uma coisa por outra?”, interroga-se Marinela.


(ESTE TEXTO FOI LEVADO AO CONHECIMENTO DA CÂMARA MUNICIPAL DE COIMBRA. EMBORA O AUTOR MULTADO QUISESSE OPTAR PELO ANONIMATO, NÃO DEIXA DE SER PREOCUPANTE ESTA SITUAÇÃO. QUANTOS ESTABELECIMENTOS NA BAIXA DE COIMBRA ESTARÃO NESTA CONDIÇÃO DE INCUMPRIMENTO, NÃO DEVIDO À SUA VONTADE, MAS À CIRCUNSTÂNCIA? NO MEU ENTENDIMENTO, CABERIA À AUTARQUIA, COM GRANDE URGÊNCIA, PRESSIONAR A LUSITANIAGÁS A INSTALAR O GÁS DE CIDADE ONDE NÃO TENHA CONDUTA PRINCIPAL, E ONDE A TIVER DEVE LIGAR COM BREVIDADE OS RAMAIS. 
ESTA SITUAÇÃO NÃO SE PODE REPETIR. A BEM DO BOM SENSO, OS EMPRESÁRIOS NÃO PODEM CONTINUAR A REZAR À VIRGEM TODOS OS DIAS PARA QUE NÃO LHE VENHAM PEDIR O CERTIFICADO DO GÁS)


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