Conheci o Eduardo Sequeira Costa no Final da década de 1980. Morava ele nas Escadas de Quebra-costas. Eu estava estabelecido por conta-própria naquela zona velha da Alta da cidade. Como ele residia perto, quase todos os dias frequentava o meu estabelecimento.
Lembro-me, o Costa era um homem bem aprumado, trabalhava então como cortador de carnes na Jomascri –um grande estabelecimento, já encerrado por insolvência, na zona de Antanhol. Nessa altura, não tenho bem a certeza, mas creio que o que mais me chamava a atenção era a tristeza que transportava no rosto. Embora fosse afável, e estimado por todos, nunca vi a sua face ser iluminada com o brilho de um sorriso. Era como se a angústia e a solidão fosse a sua segunda alma e, como karma, não se pudesse separar dela.
Um dia, sem saber precisar, por volta de 1989, todos os residentes do Largo da Sé Velha foram surpreendidos pelo som estridente de uma ambulância. “O que é que se passou? Qual o motivo do pessoal médico permanecer algum tempo numa residência nas Escadas de Quebra-costas?” –interrogavam-se os moradores entre si naquela parte monumental. A notícia correu célere e depressa se veio a saber: “o Eduardo, aquele rapaz triste, que tem um quarto arrendado em casa da senhora Maria, cortou uma das artérias carótidas. Tentou suicidar-se!”.
Talvez por partida do destino, tendo em conta que poucos resistem a uma tentativa de suicídio destas, a verdade é que ainda não tinha chegado a sua hora e os médicos conseguiram salvar-lhe a vida. Fui vê-lo ao hospital. Embora já não me lembre o que disse, mas certamente aquelas palavras de circunstância que se dizem a quem, num momento de fraqueza e fragilidade, está farto de andar por aqui: olha lá Eduardo, tens de ter coragem e força…a vida é uma coisa linda…
Não sei se pela vergonha de se sentir apontado ou não, a verdade é que ele deixou aquela zona da cidade e nunca mais o vi, até há dias. Reconheci-o imediatamente e ele a mim. Estava a arrumar carros junto à Loja do Cidadão.
Então o que se passou Eduardo? Nunca mais te vi. Porque estás aqui a aparcar carros? Conta-me.
“Depois de sair da Sé Velha, aquando da tentativa de suicídio –em que me foste ver ao hospital- nunca mais tive mão na minha vida. Quando fui morar para lá, tinha-me separado da minha mulher e do meu filho. Eu é que fui o culpado. Foi o álcool –sabes?-, eu já era alcoólico –isto é hereditário, o meu pai também era. Fui eu que estraguei a minha vida e a deles. Só eu tenho a responsabilidade de nunca mais os ver. Nunca mais vi o meu filho, deve ter agora à volta de 26/27 anos –as órbitas começaram a inundar-se.
Quando saí da Jomascri, por volta de 2005, ainda fui trabalhar para Oliveira de Azeméis como cortador de carnes. Não me pagavam. Então um dia que eu estava sem dinheiro e precisava de beber um copo com urgência, olhando para um sem-abrigo, pensei para comigo: não tenho ninguém. Trabalho e não me pagam. E se eu fosse aparcar carros? Abalei e vim para Coimbra disposto a abraçar esta minha nova profissão (se é que lhe posso chamar assim!), mas foi pior a emenda que o soneto. Nunca mais deixei de resvalar pelo cano. Continuei a beber…sou alcoólico, já disse! Mas só sou viciado em álcool, nada de drogas ou de fumo. Já me chega este vício de perdição. Apesar disto, acredita, nunca me meti em confusões. Não tenho cadastro na polícia. Estou nisto como se estivesse a cumprir o meu destino. Entendes?
Durmo numa casa abandonada no Loreto. Não recebo qualquer tipo de subsídio, RSI, Rendimento de Inserção Social, ou outro qualquer. Quando ganho dinheiro, no aparcar de automóveis, vou almoçar à “Cozinha Económica” ou compro qualquer coisa no Pingo Doce, quando não ganho é que é pior. Mas, sabes, passado todo este tempo, estou “agarrado” à rua. Isto é viciante! Tenho consciência que, sozinho, não consigo largar isto. Se me ajudassem! Talvez conseguisse deixar o álcool. Tenho de começar por aí. Sinto que tenho força para trabalhar. Com apoio, poderia vir ainda a ser muito útil à sociedade. Quando me vejo para aqui perdido, olho para trás, e vejo o que já fui, o que já tive, não posso deixar de me sentir desfalecer e sentir-me invadido pelas lágrimas. Volta e meia choro. Sabes? Deve ser da idade, sinto-me muito mais sensível e fragilizado.
Acho que esta angústia permanente, esta depressão que me consome, começou com a morte da minha mãezinha, tinha eu então 13 anos –as lágrimas correm-lhe pela cara abaixo como lava a sair do cume de um vulcão consumido pelo fogo do desassossego. Nunca mais recuperei. Foi o meu maior desgosto, foi como se tivesse perdido a trave-mestra da minha pouca estabilidade psíquica. Sou muito instável. Se calhar sou bipolar, ou lá o que isso é.
Nunca me dei bem com o meu pai –era um carrasco para mim, era muito exigente. Morreu há poucos anos. Depois da minha mãe falecer veio a casar com outra mulher que eu nunca gostei. Às vezes, sinto tanto a falta da família! Há cerca de 10 anos que não vejo os meus irmãos. Vivem lá para os lados de Nelas. São impecáveis. Não tenho nada que lhes apontar. Acho que sou a ovelha negra da família. Sabes?, todas as famílias têm um espécime destes, não concordas? Eu sou aquele que saiu na rifa da minha.
Perguntavas-me o que gostaria de receber neste Natal? Eu sei lá! Já há muitos anos que me habituei a não receber nada nesta quadra. Para mim, que vivo na rua, todos os dias são sempre iguais: Natal, Fim-de-ano, Páscoa, feriados, dias santos! Mas, pensando melhor na tua pergunta: gostava de passar o Natal como os outros passam. Ter alguém da família presente, estar num lugar com outras pessoas. Era importante, sim! Já há muito que não penso nisso. Não tenho forças para sair daqui…só se fosse com muito apoio. Mas tenho a certeza que me esforçaria para isso.
Obrigado por falares comigo. Já há muito que ninguém me ouve e muito menos liga ao que digo. Quem sabe se o meu Natal não começou hoje?"
1 comentário:
Boa ideia, juntar-mos um grupo de pessoas com sentimentos e fazermos uma ceia de natal com os sem-abrigo no meio de ambiente deles, ONDE CADA UM DE NÓS DESSE UM POUCO DE NÓS PRÓPRIOS.
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