(Imagem de arquivo)
Escrevo-te esta carta, meu filho, hoje, 19 de
Março, dia em que se convencionou ser o Dia do Pai –não achas que deveria ser
antes Dia dos Pais? Gostava de ser capaz de redigir uma missiva alegre,
optimista, bem-disposta, mas temo não sair bem. Porque é assim: se contar que
estou feliz por ser teu pai estou a mentir. Posso embarrilar todos à minha
volta, mas não me consigo enganar a mim. Se mostrar a minha infelicidade e
frustração corro o risco de parecer ridículo, talvez mesquinho até, ou em estado de auto-flagelação. No balanço
entre as duas alternativas, mesmo assim, escolho a última, a verdade que me consome a alma. Estou triste,
obviamente. Assumo. Não vale a pena escamotear a questão.
Tens 31 anos, és inteligente e dono de vários
talentos como a música e o desenho, apenas para exemplificar. Até hoje, nunca
permaneceste num emprego mais do que três meses. Há cerca de quinze anos que a
tua ocupação é fumar uns charros e beber uns copos. Se acaso ganhasses para
sustentar os teus vícios eu nem teria nada a ver com isso. Acontece que permaneces em
casa sem fazeres absolutamente algo de útil. Sabes como se chama a alguém que
vive às custas de outrem? Claro que sabes! Mas, na tua inutilidade, pareces não
querer saber. Em década e meia ganhaste o hábito de te “pendurares” nos teus
pais. O pior é que, no teu entendimento deturpado, defendes que os teus
progenitores, pelo facto de o serem, têm obrigação de te sustentar. Para agravar
ainda mais as coisas e num comportamento inadmissível, insultas-me. Insultas-me
não, agrides-me verbalmente há muitos anos com a brutalidade de alguém que
desconhece o reconhecimento. Culpas-me de tudo. Numa manipulação constante, e
que te é tão peculiar, embora sendo de influência, imputas-me a
responsabilidade de seres um falhado por que não te dei amor em criança. Dei o
que pude dar. Sabes muito bem a razão de não te poder facultar mais carinho.
Enquanto tu dormias descansado o sono dos anjos eu trabalhava até altas horas
da noite para te poder proporcionar uma vida que não tive; para te poder
comprar a consola, os primeiros jogos de computador, roupa de marca e até bons
sapatos, para que tu não te sentisses inferiorizado perante os teus colegas,
quando eu senti a dor de andar descalço. Mas não te esqueças que nos teus
momentos importantes eu marquei sempre presença. Tantas vezes cansado e a arfar
para poder estar lá e para que tu não sofresses o que eu sofri quando os meus
pais, os teus avós, não estiveram e me senti tão só. Sabias que a primeira vez
que comemorei um aniversário tinha 18 anos? Consegues imaginar que o teu avô, e
meu pai, nunca me perguntou se estava bem ou mal e precisava de alguma coisa? Com
a tua idade, de 31 anos, já estava casado e era pai de dois filhos, trabalhava
há vinte anos e estava estabelecido com um negócio.
Com franqueza, como podes tu acusar-me de
seres o mau resultado de não te dar mais afecto? Como podes ser tão egoísta e
incriminares-me dos teus desaires, da tua falta de coragem em não conseguires largar as muletas, o álcool e “axe”,
da tua estagnação como pessoa que a vida não formou e como homem que não cresceu?
Responsabilizas-me pela educação que te dei. Lembras-te que te proporcionei
todas as oportunidades que eu não tive? No desporto praticaste Hóquei em Patins,
Karaté, mas sempre com enfado, contra vontade e por pouco tempo. Nos estudos
não passaste do 9º ano –recordas que te queixavas sempre? Ora eram os
professores, ora eram os colegas. E eu, acreditando que tu eras especial, de
uma sensibilidade acima da média, fui aparando o jogo e ia apoiando as tuas
mudanças de estabelecimento escolar. Claro que a história era sempre igual e
repetida em cenas de “déjà-vu”. Rememoras
a última? Quando foste para Lisboa, para uma reputada escola de música, e
durante quase um ano paguei quinhentos euros de propinas mensais até te
aborreceres e abandonares? Sim, porque tudo o que te cai no regaço sem dificuldade é embaraço. Esforçares-te para obter alguma coisa e dares contrapartida, ora. Isso nunca foi contigo! E eu, dividido entre uma esperança mística e uma fé terrena cega, fui esperando que mudasses. Mas tu nunca alteraste a tua forma de ser.
Pelo contrário, com o passar dos anos, estás cada vez mais na mesma.
Podes atirar-me à vontade as acusações que
quiseres, mas nunca poderás fazer sentir-me culpado do que quer que seja. Certamente
que não fui o melhor pai do mundo. Porém, fui o educador possível. A
consciência, a pesar-me, não me indicia por ter sido negligente fosse no que
fosse. Na hora em que tu precisaste de mim eu estava lá. Se pudesse voltar
atrás, no mesmo contexto, faria igual com umas pequenas mudanças de pormenor: seria mais
exigente e autoritário com a tua endémica fragilidade de vontade e não te presentearia
com tanto conforto. É aqui que tenho a certeza que falhei. Dei-te tudo o que
não tive, com um incomensurável prazer, e tudo junto foi demais. Exagerei. Mas
esta exageração foi feita de boa-fé. Pensei que, tendo tudo como a maioria e
não sofrendo a dor que conheci tão bem, te tornarias uma pessoa de bem. Erro de
palmatória, já sei! Mas está feito e não vou passar o resto da minha vida a
inculpar-me por isso. És assim porque queres. Estás sempre a tempo de mudar,
se essa for alguma vez a tua vontade. Hoje é o meu dia: O DIA DO PAI!
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1 comentário:
Amigo
Também sou pai. Casei cedo, aos dezanove anos nasceu a minha segunda filha, alguns anos depois nasce o mais novo da trindade, hoje tem pertinho de vinte e cinco voltas ao sol.
Nem tudo o que luze é oiro, verdade, mas tenho um anel d'oiro maciço que tanto valor tem para mim, os seus dezoito quilates, baços! Por mais que o brune com pano de lã, teima em não cintilar. Mesmo assim, porque é meu, adorno-o...
Por falar, neste caso escrever, em maciço, eis-nos aqui com um texto de grande peso qualitativo. Aliás algo ao qual já me habituei neste blogue.
Às primeiras até parece que o autor pretende acusar, mas depressa se nota que há dor e que tudo não passa de uma confissão. Um revelar sem necessidade de contrição e que me parece no seu todo ser uma prece. Para escrever assim, "com o coração na caneta", é preciso muita coragem, mesmo que seja ficção. É um acto que o torna vulnerável mas ao fazê-lo, contrário ao seu sinônimo, não derrotável.
Muito obrigado
Um grande abraço equinocial, pois hoje, por aqui, mesmo sem as andorinhas já me cheira à Primavera
Alvaro José da Silva Pratas Leitão
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