Na página "OLHARES... POR COIMBRA E PELO PAÍS", na rubrica "NÓS POR CÁ..." leia o texto "NESTE CARNAVAL, OS CARETOS DO COSTUME" e na rubrica "OLHAR PARA SUL..." "CARTA À PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA"
NESTE CARNAVAL, OS CARETOS DO COSTUME
Passou o Dia de Carnaval. Foi o fim de um
período de folia que começou no domingo anterior. Por isto mesmo diz o povo que
“a vida são dois dias e o carnaval três”.
Aquela terça-feira foi um dia solarengo, repleto de luz e cor, em que o Governo
não tornou feriado nem abonou tolerância de ponto à função pública mas que
muitas autarquias –incluindo a de Coimbra- deram. Na Baixa, só cerca de dez por
cento das lojas de comércio tradicional estiveram abertas. Com esta introdução
já posso escrever sobre onde quero chegar:
Primeiro, fará algum sentido o Governo da
República não dar tolerância de ponto quando, a seguir, pela independência e
competência do poder local, é ultrapassado e desvalorizado por muitas câmaras
municipais do país? Será que este Governo é sadomasoquista? Gosta de bater e ser
chicoteado? Ou será autista (sem ofensa para os familiares dos próprios) e, em
predestinação, prefere caminhar alheio ao que se passa à sua volta?
Segundo, estando toda a função pública a
trabalhar, como a Loja do Cidadão por exemplo, e não tendo Coimbra tradição
carnavalesca, em que fundamento assentou a decisão de encerrar os serviços
camarários? Até se entendia, se tivesse grandes festividades em curso, como é o
caso de outras cidades como Mealhada, Torres Vedras e outras. Ora, como escrevi
atrás, a cidade dos estudantes não tem. Como entender esta decisão num tempo de
crise, em que se deveria apelar ao trabalho dando o exemplo e mostrar entrega
pessoal e coletiva para sairmos deste estado letárgico que nos tem mandado para
o charco? Nesta decisão do executivo da Câmara Municipal de Coimbra, só se
podem extrair estas razões: política
partidária no pior, utilizada como afronta e arma de arremesso ao Governo, falta de bom senso na governação local e
necessidade de agradar a todo o custo aos funcionários da autarquia.
Terceiro, estando o comércio de rua no estado
caquético em que se adivinha, pelo estagnado poder de compra, como entender que
só uma ínfima parte deste universo comercial estivesse aberto? Por que há
crise, não há? Não é invenção minha! Se bem que, às vezes, comece a pensar que é!
E que só eu mesmo tenho dificuldades! Argumentar que a urbe fica vazia neste
dia e não haverá negócio só em parte pode aceitar-se como justificação. Todos
os dias são imprevisíveis, por isso mesmo o Dia de Carnaval não é diferente dos
demais. Acho que os comerciantes ainda não entenderam que deveriam ser menos
egoístas e darem um pouco de si à cidade. Esta pobreza que alastra no sector,
no mínimo, já deveria ter despertado uma consciência social. Abrir o
estabelecimento não pode assentar apenas no deve
e haver. Tem de restar um sentimento
de alteridade. Fazemos parte de um
todo. Não estamos isolados. Somos fios que se entrelaçam e formam uma teia. Perante
este comportamento maioritário, como é que se argumenta contra o pensamento
geral de que o comércio está muito bem e a ganhar muito dinheiro? Não tenho
dúvida de que estamos em face de uma adversidade maior do que a crise
financeira: o desalento endémico, o baixar os braços, o enfiar o chapéu de
vencidos da vida.
Não seria melhor, o Governo, as autarquias, os
comerciantes, todos desafivelarem a máscara e mostrarem a cara tal como ela é?
Sem jogos faciais, sem contorcionismos, sem falsidade? É que assim, se
continuamos a fingir com a mesma careta, o Dia de Carnaval não faz qualquer
sentido.
CARTA À PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA
Cara Joana Marques Vidal, Procuradora Geral da
República, espero que esta minha carta vá encontrar Vossa Excelência de boa
saúde na companhia de todos os seus e em paz com o fantasma do
segredo de justiça, esse desterrado e desalmado espectro invisível que se torna
materializado num estalar de dedos, e que, apesar da sua luta, teima em atentar
o seu magistério.
Porque não nos conhecemos,
apresento-me: Luís Fernandes, um pacato cidadão já com algumas rugas e muitos
cabelos brancos que, sem ímpeto legalista ou de justiceiro, faz da escrita uma
espada a desbravar o denso manto da ignorância das coisas simples e banais. Uma
espécie de vento rasteiro a mostrar que depois da passagem dos grandes eventos
anunciados fica sempre uma sedimentação calcada e sem história, uma injustiça
latente nos macerados mas sem voz para se defenderem das atrocidades tantas
vezes disfarçadas de legitimidade.
Enquanto garante da promoção da defesa da
legalidade democrática, escrevo-lhe esta missiva por dois motivos: o primeiro,
para levar ao seu conhecimento o teor de um acontecimento. O segundo, para a
interrogar como pode esta (in)justiça continuar aos seus e nossos olhos?
Embora já tivesse escrito a
primeira parte desta história, ou nefasto acontecimento, no mais antigo
semanário de Coimbra O Despertar (edição de 23 de janeiro último), naturalmente
sem identificar as partes e sem entrar no caso concreto, principio por lhe
contar que se trata de um processo de violência doméstica. Tudo teria começado
numa cidade do litoral, há cerca de uma dúzia de anos, quando Maria, na altura
com 25 anos, funcionária pública e moçoila bonita,
depois de um casamento falhado, se enamora de um novo companheiro. Desta nova
ligação apaixonada nascem dois filhos, atualmente um com 12 e outro com
meia-dúzia de anos. Ao que parece, com o passar do tempo, a mulher foi-se
apercebendo de algumas escapadelas e
facadas no matrimónio e pouca
vontade de contribuir para a despesa caseira e começou a reclamar.
Alegadamente, a resposta por parte do parceiro ao longo dos anos foi umas
contundentes bofetadas embrulhadas em vapores etílicos, de vez em quando. Fosse
por vergonha ou medo, Maria foi calando e nunca apresentou queixa nas
instituições para o efeito. Até que, presumivelmente, há cerca de um ano
começou a pensar em, conjuntamente com os filhos, abandonar aquela vida de
sofrimento. A opressão física e mental aumentou e agora acompanhada com
chantagem de lhe serem retirados os rebentos. E Maria, na casa e sua
propriedade do anterior enlace, continuou a calar. Até que há cerca de três
meses mudou para outro quarto e passou a dormir com o rebento mais novo. Estava
aceso o rastilho de mais violência já por ela sobejamente conhecida. Pouco
depois do Natal, a meio de uma noite e presumivelmente tomado pelo álcool, o
companheiro irrompeu e à frente da criança de seis anos violou e obrigou-a
manter relações sexuais. E Maria foi apresentar participação na PSP local. O
denunciado foi sinalizado e contactado pela polícia. Em resposta aumentou a
pressão sobre a sua comparte, retirando-lhe os cartões de crédito e o
telemóvel.
Entretanto, por estes dias, sob
ameaça de morte, submeteu a mulher, e os filhos, a entrar no automóvel e
obrigou-a a consultar uma vidente numa localidade com praia ali próximo. A
visionária, perante os dois, sentenciou o fim daquela união e o agressor,
ficando fora de si, ameaçou matá-la juntamente com os filhos. Em desespero de
causa, a sequestrada, por telefone, conseguiu contar a mãe e descrever-lhe o
cenário de horror e violência que, juntamente com os seus rebentos, estava a
decorrer. A progenitora contactou a PSP e foi montada uma operação de resgate.
Aberto o processo de inquérito, foi aconselhada a sair imediatamente com os filhos
da habitação familiar –recorda-se que o locado está em seu nome. O tirano, como
se nada se passasse, manteve-se onde sempre esteve e a vítima foi viver para
casa de uma amiga. Durante duas semanas esta prole desfeita e em frangalhos
viveu um calvário sem precedentes, sobretudo pela impunidade e liberdade de
movimentos do déspota que, apesar da medida de coação imposta de não poder
aproximar-se da ex-companheira, para além de tentar resgatar os filhos na
escola, continuou a intervalar com a mulher juras de amor e intimações de
morte.
PARTIDA PARA LOCAL DESCONHECIDO MAS NEM TANTO
Depois de duas semanas em casa de amigos, sem
meios necessários ao bem-estar como roupas para os miúdos e largando o seu
trabalho, no âmbito da APAV, Associação de Apoio à Vítima, foi remetida para
local totalmente desconhecido até para a sua própria mãe –que se imagina como
estaria nessa altura a viver a odisseia de terror da sua única filha. Depois de
uma semana numa localidade de articulação, a ofendida, acompanhada dos seus
dois filhos, foi transferida para uma casa comunitária de apoio à vítima numa
cidade a cerca de 250 quilómetros, a sul.
Há mais ou menos duas semanas, numa
noite aparentemente igual a outras onde o silêncio e a angústia imperavam e só
quebrados no ranger das tábuas centenárias, por volta das quatro da manhã, foi
acordada pelo barulho e gritos da responsável pela casa. A tocar à campainha do
edifício estava o miúdo de 12 anos acompanhado com o pai e este com mais duas
pessoas. O que teria acontecido? Maria, presumivelmente, a tomar soporíferos
para dormir e tentar aguentar tanta sorte indigesta de mau fado, não deu conta
da saída do seu filho mais velho a meio da noite. Apesar de não ter telemóvel o
adolescente ausentou-se e, através de uma cabina pública, telefonou ao pai e
deu-lhe conta da localização. Ou seja, a mulher estava à mercê do agressor. Não
aconteceu uma tragédia porque, é de antever, não era a intenção do algoz
desencadeá-la por hora. Está de ver que, levando duas testemunhas consigo,
perante as frágeis provas de agressão física, pretendia provar a negligência
grosseira maternal da ainda esposa.
Pergunta-se: estando o ofensor proibido de se
aproximar da vítima, não seria suposto ter uma pulseira eletrónica e controlado
à distância? Interroga-se ainda, havendo filhos não será normal acontecer um
desfecho assim, de contacto entre as crianças e o progenitor? Para os serviços
habituados a lidar com situações análogas, não deveria ser evidente e assegurar
o princípio da precaução? Que segurança é transmitida a quem é obrigada a
abalar de trouxa às costas do seu habitat
e com os filhos a tiracolo? Ainda outra interrogação: ao fazer deslocar a
vítima e mantendo o agressor no seu meio, como nada se passasse, não estaremos
perante uma escandalosa beneficiação do infrator? Estão erradas ou não as
regras judiciais? Se estão certas, parece-me, alguém foi negligente e não
cumpriu com o que estava obrigado. Refiro, obviamente, a investigação e o juiz de instrução, este,
que é o garante dos direitos, liberdades e garantias de todos os sujeitos
processuais, sejam arguidos, assistentes ou ofendidos.
Mas ainda não acabou o calvário
desta sentenciada e a penar antes do julgamento, senhora Procuradora Geral da
República. Há uma semana, em face do desgaste psíquico que tudo isto deve estar
a causar e se adivinha no adolescente, o rapaz “passou-se”. Depois de agredir verbalmente a mãe, empurrando a
psicóloga e a assistente social e destruindo os objetos à sua mão, em descompensação,
acabou internado, em psiquiatria, num hospital de Lisboa. Sem qualquer
estratégia e harmonização de cuidados de segurança dos serviços envolvidos na
salvaguarda da integridade física de Maria, esta deu de chofre com o seu
ex-companheiro na mesma sala do hospital.
Para finalizar, senhora Procuradora Geral da
República, interrogo: estes procedimentos, tendo em conta que há vidas humanas
em jogo, não são uma espécie de roleta russa, pois não? É quer se forem –e
esperamos que não e este caso fosse pontual-, não é de admirar que, segundo
a UMAR, União Mulheres Alternativa e Resposta, tenham ocorrido mais de
quatro centenas de mortes na última década!
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