Na página "OLHARES... POR COIMBRA E PELO PAÍS", na rubrica "NÓS POR CÁ..." leia o texto "A HISTÓRIA DE TERESA"
A HISTÓRIA DE TERESA
I
“Nasci
em 1965, numa terreola ali para os lados de Oliveira do Hospital. A minha mãe
era cigana. Quando conheceu o meu pai, um português estarola e viandante por
terras de Espanha, era bailarina de flamengo, em Salamanca. Apaixonaram-se, mas
como se tratava de um amor impossível entre duas culturas tão diferentes entre
si, tiveram de fugir a toda a pressa de terras de Castela e Leão para o meu pai
não ser trespassado por balas.
Por acasos do destino vieram a cair numa aldeia onde o sol era o deus
menor e o inverno longo demais. Tornaram-se caseiros de uma grande quinta, de
uma família de Lisboa. Naquela imensidão de terra, onde o horizonte parecia
longínquo, tratavam de tudo no respeitante à agricultura. Lavravam a terra e cuidavam
dos muitos animais. Como não tinha outros divertimentos o meu pai fazia filhos.
Quando nasci vi-me no meio de uma prole de uma dezena de irmãos. Os tempos que
corriam eram de extrema pobreza para todos, quanto mais para uma família
numerosa.
Talvez por pena, não sei, os donos da quinta e patrões de meus pais
levaram-me para a capital, tinha eu então 18 meses de idade. Eu fora dada como
coisa imprestável e sem valor. Fui com raquitismo em último grau. Salvaram-me a
vida “in extremis”. Moravam em Almada. Eram duas irmãs, uma delas, médica. Uma
das duas era casada com um almirante da marinha, do Arsenal do Alfeite, e não
podia ter filhos. A outra tinha dois herdeiros. Como viviam em casas gémeas,
fui logo viver com a que não podia ter descendentes. Mas como eram edifícios
ligados, estava sempre em contacto com as duas famílias. Almoçava numa casa e
jantava noutra. Era uma criança mimada por todos. Davam-me tudo. Certamente
pensavam que ao cobrir-me com bens materiais me enchiam de contentamento.
Apesar de ser muito bem tratada, naquele ambiente opulento, senti sempre que
era a “outra”, a estrangeira, a filha que não pertencia àquele meio.
Nunca me perfilharam nem deram carinho. A ternura em coisas simples,
como se dá a quem se ama. Talvez porque lhes faltasse o cordão umbilical do
amor que os ligaria a mim, para compensar, ofereciam-me tudo, bens materiais,
em excesso. Mas o gesto não era tudo. A quantidade não fazia a qualidade. Eu
era uma criança ensimesmada. Faltava ali qualquer coisa e nunca enchia o buraco
negro da minha solidão. Naquela casa grande, abastada, sentia-me sempre
deslocada. A menina só, rodeada de objetos, de coisas e mais coisas que nada me
diziam. Depressa me apercebi que a felicidade está muito para além do tangível.
Embora faça parte do mesmo pacote, transcende tudo o que é palpável. Sentia-me
uma alma perdida num vácuo, um lençol a esvoaçar ao vento, sem ponta de corno
onde se apoiar. Nada daquilo que me era oferecido me preenchia. Por mais que me
fizessem as vontades, nada tapava aquele negrume que, como cal viva, me
carcomia o peito. Era um remoer diário, como se tivesse um roedor a mastigar-me
as entranhas e a provocar-me uma dor lancinante. Eu não sabia nada de onde
viera nem para onde ia. Sempre que procurava saber das minhas reminiscências a
conversa era desviada e eu ficava cada vez mais profundamente infeliz. Jamais
entendi a razão de nunca me terem levado a visitar os meus pais. Até parecia
que ao fazerem um corte entre o presente e o passado me queriam poupar a
qualquer coisa que não entendia.
Até aos 16 anos, dia-após-dia, vivia acordada e pregada num pensamento.
Noite-após-noite, a dormir, sonhava com a minha mãe a ir buscar-me num cavalo
branco e a envolver-me num longo e apertado abraço. Imaginava cenários de
muitas lágrimas e muitos beijos repenicados. Em gritos de silêncio ouvia o meu
apelo pungente: mamã… mamã!
Mas os meus pais idealizados e idolatrados nunca apareceram, nem me
foram visitar jamais.
II
Depois de muito insistir com a família de
acolhimento, já com 17 anos, consegui saber que os meus pais biológicos viviam
agora na Mealhada. Agarrei no meu estendal e parti da capital à procura da
razão do meu ser e de toda a minha existência.
Na terra do leitão, ao entrar naquele pequeno mundo de miséria e tão
diferenciado da casa onde cresci recebi um choque brutal. Num pequeno tugúrio
viviam todos os meus irmãos e os meus pais. Ninguém conseguia falar com
ninguém. Nem eles diziam nada nem eu quebrava o mutismo. Ali eu era uma
estranha. Era notório que não fazia parte daquele universo indescritível.
Estive lá dois dias. Ao pequeno-almoço davam-me sopas de “cavalo cansado”, broa
em bocados com vinho. De manhã, quando me levantei e fui tomar banho, numa casa
de banho sem privacidade, dei com o meu pai a espreitar através da cortina. À
noite, já muito bêbado, ouvi-o gritar, aos berros com a minha mãe: “confessa… a
Teresa não é minha filha, pois não?! Diz-me, porra!”
Estampei-me completamente com aquele quadro paupérrimo dos miseráveis,
de Victor Hugo. Fiquei desorientada. Era o ruir de muitos sonhos que
sustentavam o meu crescer. Sentia um enorme conflito interior dividido entre a
raiva e a comiseração. Por um lado foi bom conhecê-los. Foi o desmistificar de
uma ilusão. Por outro, a perda desta fantasia foi terrível. Foi sanguinolenta
para a minha emoção. Era neste estuário de imaginação que eu me ancorava.
Regressei a Lisboa de cabeça perdida. Não era mais a mesma rapariga que
uns dias antes, feliz e cheia de ansiedade, partira à procura do sangue do seu
sangue, da sua própria identidade, do seu passado. Depois de conhecer a
verdade, era uma sombra que se arrastava pelas pedras da calçada.
Em casa da minha segunda família ninguém me perguntou como estava, como
me sentia e o resultado da viagem. Se calhar nem se aperceberam que eu não era
mais a mesma pessoa. Provavelmente nem teriam visto que eu perdera toda a força
anímica que impele um qualquer pré-adulto para a luta que se avizinha.
Pela minha fragilidade, mais que certo, depressa estava a arranjar
muletas para me manter igual, erguida, no meio de pessoas que nunca
questionaram a minha tristeza. Comecei na “erva”, no “axe”. Com 18 anos entrei
na heroína. Sempre obsessivamente à procura de novas sensações que me fizessem
esquecer e tapar aquela abertura horrível e sem fundo que sentia no meu âmago.
A seguir conheci a cocaína. Nunca tive problemas de dinheiro -hoje, à
distância, tenho a certeza que as drogas entraram na minha subsistência não só
pela necessidade de amparo psíquico, mas sobretudo pela facilidade que tinha no
acesso monetário. O numerário não era problema. Os estupefacientes menos ainda.
Com o 25 de Abril, num manto de liberdade esotérico e embrulhados na
democracia, os narcóticos vieram para conquistar, rasgando em fogo de
destruição muitos jovens como eu, e ficar de vez no território. A vontade de
experimentar tomava todos de supetão ou, pelo menos, os mais abastados. Era
tudo diferente, um desconhecido mundo novo que viria a marcar a minha vida para
sempre.
Embora possa constituir uma desculpa esfarrapada, é bem possível que a
minha propensão para a adição tivesse a ver com os meus genes, em virtude de os
meus pais serem alcoólicos. Será? Não será? Jamais obterei uma resposta
convincente e esclarecedora. Curiosamente, ou nem tanto, esta família de
hospedagem nunca se apercebeu da minha adolescência tumultuosa. Nas aulas tudo
corria razoavelmente. Não dava nas vistas, e era uma aluna média e regular.
Depois do liceu fui estudar para a Escola Superior de Belas Artes António
Arroio. Nunca deixei o maldito vício. Era nele que explanava toda a minha
frustração. Era a minha praia privada onde tomava banhos secos de solidão.
Com 23 anos tinha o curso artístico. Completei com o mestrado em Belas
Artes, em pintura, restauros e toda a sua envolvência, incluindo arte sacra e
tectos. Para além disso já tinha feito várias exposições na Rua do Ouro, na Rua
Augusta. Mas eu tinha aquela angústia que me corroía a alma e todo o meu ser.
Quem era eu? De onde provinha? Eu precisava de saber. E de cada vez que me
interrogava mais me atolava no entorpecimento.
III
Até que depois de tantos anos,
inevitavelmente, foi descoberto o meu segredo: havia um drogado na família. As
reações foram o pior que se possa imaginar. Vieram os cortes drásticos na
semanada e grandes sermões telúricos, que abanavam tudo em redor.
Mas a minha mente não alinhava com convenções nem restrições e depressa
estava a remediar a situação da pior maneira. Comecei a surripiar tudo o que
podia para vender na Feira da Ladra. Uma peça aqui, outra acolá nos talheres de
prata, Companhia das Índias, faianças portuguesas antigas, enxovais e lençóis
de linho, paulatinamente, ia tudo. Num fim-de-semana, em que tinham partido
para a quinta, despejei arcas e armários. Quando regressaram a Lisboa, vindos
de Oliveira do Hospital, foi um embate brutal naquela realidade aparentemente
impossível de prever, um tumulto de choros, complexos de culpa e imprecações.
Fui posta na rua só com a roupa que tinha no corpo.
Fui viver para a Costa da Caparica, para a praia. Durante vários anos
dormi dentro de um barco e onde calhava.
Numa tentativa de fugir àquele ambiente de toxicodependência, vim para
Coimbra. Mas azar meu, aqui, nesta cidade, era igual. No fundo, bem no fundo,
eu queria abalar de mim. Eu queria desprender-me deste corpo pesado e que tanto
sofrimento me causava. Mas a resposta para os nossos problemas está sempre
dentro de nós e nunca no exterior que nos rodeia. Nessa altura não entendia
isso. Tentei o suicídio. Mas até aqui não tive sorte.
Um dia, num eterno retorno que nos há-de comandar sempre, mais uma vez
à procura de ausentar-me de mim, fui para a aldeia, próximo de Oliveira do
Hospital, e pedi ajuda, argumentando que era filha dos caseiros da quinta,
atrás do Sol Poente.
Durante 11 dias trabalhei no campo, na tentativa de parar a ressaca que
me aniquilava todo o meu ser. Tinha a certeza que não era com Metadona ou
Subtex que eu me conseguiria curar. Só o trabalho poderia constituir a terapia
que eu tanto necessitava para me encontrar. Em solilóquio, dizia para mim que
nunca mais consumiria drogas duras. Nunca mais! –repetia até à exaustão.
Na aldeia, encontrei o amor da minha vida: o Leonardo. Era muito mais
velho do que eu. Trabalhava como estucador e ladrilhador. Viemos para Coimbra.
Tive uma filha, deve ter hoje cerca de 20 anos. Perdia-a com 7. Prometeram-me
que ficaria no “Ninho”, na Fundação Bissaya Barreto, junto ao Portugal dos
Pequenitos, até eu recuperar. Um dia cheguei lá e a criança, a minha filha, a
carne da minha carne, não estava. Começaram a dar-me desculpas e eu “passei-me
dos carretos”. Agredi a diretora. Prendia-a pelo pescoço para ela me dizer onde
estava o sangue do meu ventre. Veio a polícia. Estive detida um dia. Nunca mais
soube onde está o fruto do meu grande amor. Desapareceu para nunca mais a ver.
Custa muito. Apesar de consumir, amamentei-a ao peito até aos dois anos. Alguém
consegue perceber uma ferida destas? Retirar um filho a uma mãe é selvático, é
impessoal, é inqualificável. É duro de mais para ser verdade. Onde está a minha
querida?
O Leonardo não queria trabalhar. Um amor e uma cabana nunca deu certo.
Separámo-nos. Entretanto fui trabalhar para o Hospital dos Covões, mas como
continuava a consumir fui despedida.
IV
Hoje,
curada das drogas, continuo em Coimbra. Vivo mal, com muita dificuldade.
Preciso de trabalho. Quero viver com dignidade. Continuo a pintar. É o que
gosto de fazer. Nunca abdicarei da pintura. Tenho duas certezas: a primeira,
porque não se dá valor à arte, adivinho que morrerei na miséria. A segunda é
que, custe o que custar, hei-de encontrar a minha filha. Não posso exalar o
último suspiro sem a abraçar. Por muitos pecados que praticasse não posso ser
condenada a tamanha pena. Onde estás meu amor? Dá-me um sinal de ti!”
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