sexta-feira, 13 de março de 2015

INCÊNDIO NA BAIXA



Cerca das 06h30 da manhã deflagrou um incêndio num pequeno armazém de bebidas que dava apoio ao estabelecimento de restauração “O Manel”, mais conhecido por “Manel do Bota-abaixo”. As chamas passaram para a oficina de Delfim Taborda, electricista de automóveis, e, levando também o seu depósito onde estavam arrumadas baterias, destruíram completamente todo o seu ganha-pão. Por contágio, o fogo alastrou também a um prédio contíguo desabitado.
Segundo o porta-voz dos bombeiros, João Patriarca, “vinte minutos depois o incêndio estava terminado. Foi retirada uma senhora de um outro edifício vizinho devido à envolvência e inalação de fumos. Foi fácil de combater devido à hora a que ocorreu e também pelos acessos facilitados.”
A combustão foi combatida pelas corporações de Bombeiros Sapadores de Coimbra, Bombeiros Voluntários de Coimbra e Bombeiros de Voluntários de Brasfemes.

FOI-SE A ÚLTIMA OFICINA DE ELECTRICISTA DE AUTOMÓVEIS

Por coincidência, na edição de hoje do jornal O Despertar escrevo que o Delfim Taborda era o último sobrevivente de uma profissão em desaparecimento, no apoio à parte eléctrica em automóveis, na Baixa. Há vinte anos havia vários profissionais neste ramo de serviços. Este incêndio, nesta noite, apagou o que restava da memória deste ofício, nesta zona antiga. Naturalmente abalado pelo triste acontecimento, Delfim foi adiantando que lá ficou tudo, baterias de automóveis, ferramentas e só por sorte não ficou nenhuma viatura. Os prejuízos são imensos mas que não sabe adiantar o seu montante.

A BAIXA É UM GIGANTE COM PÉS DE BARRO

Quando tentamos fazer perguntas aos chefes de bombeiros sobre a área envolvente da Baixa e maioritariamente com edificado em mau estado e a notória predisposição para a ignição, em corte, respondem: “não vá por aí! Não vale a pena falar nisso. Temos de continuar a rezar para que, um destes, não haja uma tragédia de lastro incomensurável”. Até agora, talvez devido à prontidão dos soldados da paz, todos temos tido sorte e ainda não aconteceu a repetição do fogo do Chiado, em 1988, em Lisboa.
Numa zona histórica com prédios centenários, com muitas paredes interiores em enxaimel –técnica ancestral de tábuas cruzadas e cal-, pisos em madeira e sem seguro de garantia patrimonial futura, a questão é: o que se poderia fazer para minimizar o previsível?
Primeiro, como as seguradoras fogem, como o diabo da cruz, de segurar estes edifícios –o normal é não apresentarem propostas ou, se o fizerem, os custos do prémio são tão absurdos que nunca se realizam- poderia a autarquia desenvolver esforços para negociar um seguro global e colectivo para esta zona de risco. Com o envolvimento dos proprietários particulares, estes pagando valores razoáveis, deveria tentar negociar uma cobertura para todos os edifícios. Pelo menos com um valor mínimo que, em caso de sinistro, garantisse que os proprietários recuperariam uma parte do perdido e que lhes permitisse avançar para a restauro.
Por outro lado, sem o estigma da posse administrativa e, como até há poucos anos, usada com espada de Dâmocles, de ameaça aos possuidores, a parte frágil e sem defesa, deveria a edilidade, através do pelouro da habitação, sentar à mesa todos os interessados em resolver esta dificuldade que urge e é, a cada dia que passa, mais um barril de pólvora. Não há problemas irresolúveis, pelo contrário, há incapacidade dos intervenientes em resolvê-los. Até aqui temos tido dois blocos inamovíveis. Um, representado pelos donos das edificações, sem dinheiro para alterar seja o que for e presos a um imobilismo incapacitante, não arrendam os locados porque estes não possuem os requisitos mínimos de habitabilidade e, por isso, as casas permanecem abandonadas há décadas. Outro, desempenhado pela autarquia, está o poder iluminado do “quero, posso e mando”. Com o Novo Regime de Arrendamento Urbano erguido em riste, pronto a fazer da lei um esquadro aplicável a todos por igual e sem levar em conta que cada caso é um caso, que na sua especificidade não se pode tratar por igual o que é intrinsecamente diferente, e que o mérito de uma solução reside na aplicação da legislação a contento das partes em confronto e não na sua facilitista imposição pura e dura. Do meu ponto de vista, saliento que desde que Francisco Queirós é vereador da habitação a sua actuação tem sido mais tolerante e humanista para os senhorios do que o anterior responsável pelo pelouro. Numa visão estalinista e anacrónica, por parte da Câmara Municipal, até há poucos anos qualquer dono de um qualquer barracão era tratado como um grande capitalista.
Por outro lado ainda, e à espera de uma resolução adiada, há dezenas de prédios na Baixa em que o único espaço que está activo é o rés-do-chão com estabelecimento comercial e cuja entrada para os pisos superiores é através da loja. Muitos dos andares, para além de decrépitos e cheios de lixo e a constituir um foco de perigosidade, estão a ser um ónus pesado para os comerciantes já que o valor tributável em sede de EMI, Imposto Municipal sobre Imóveis, e atribuído pelas Finanças engloba o prédio por inteiro e o senhorio, naturalmente, faz repercutir a sua incidência ao arrendatário. Servindo a edilidade como mediadora, é urgente criar uma entrada comum para dois prédios contíguos e dar utilidade a estes espaços habitacionais vazios e sem prestabilidade social. É que, para além disso, se a letargia continuar vamos assistir a mais algumas falências nos próximos tempos.
É preciso flexibilizar ainda mais o licenciamento das obras particulares nesta área de antanho. É necessário ter a sensibilidade de sentir que comerciantes e proprietários estão esgotados e na berma do precipício. Basta, por exemplo, uma intimação da fiscalização camarária para fazer transbordar o copo. Há vidas humanas em jogo. Para além das obrigações materiais há cidadãos que querem participar se lhe forem dados meios acessíveis para continuarem a viver. Guiados pela generosidade, todos, temos de ser audazes e capazes de criar soluções possíveis para casos impossíveis e sempre que esteja em jogo o bem comum. Se assim não for, se não dermos um pouco de nós para derrubar barreiras, as zonas velhas das cidades, tais como as conhecemos, inevitavelmente vão desaparecer como centros de memória e convivência humana.
Segundo, numa altura em que a construção civil, como motor da economia, atravessa a sua maior crise de identidade, não se entende que o Governo continue a assobiar para o lado e não desenvolva um programa de crédito a custo zero para as zonas velhas –mas com contrapartida de rendas condicionadas com tecto máximo pré-negociado. A maioria dos proprietários de muitas destas casas são herdeiros sem dinheiro para mudar uma telha –em alguns casos chega à dezena de mandatários para o mesmo locado- e cuja transmissão foi um ónus e não uma benesse. Sem meios financeiros e completamente impossibilitados de recuperar seja o que for sentem-se perdidos num labirinto sem saída.

Se nada for feito, como dizem os bombeiros, um dia destes assistimos a uma tragédia e um quarteirão pode explodir como um paiol de dinamite. O melhor é mesmo continuar a orar a todos os santinhos para que a deflagração seja minimizada. O problema é se eles se distraem e há uma catástrofe. Nessa altura, como já é normal, vai fazer-se tudo a correr. É triste, não é?

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