Cerca das 06h30 da manhã deflagrou um incêndio
num pequeno armazém de bebidas que dava apoio ao estabelecimento de restauração
“O Manel”, mais conhecido por “Manel do
Bota-abaixo”. As chamas passaram para a oficina de Delfim Taborda,
electricista de automóveis, e, levando também o seu depósito onde estavam
arrumadas baterias, destruíram completamente todo o seu ganha-pão. Por
contágio, o fogo alastrou também a um prédio contíguo desabitado.
Segundo o porta-voz dos
bombeiros, João Patriarca, “vinte minutos
depois o incêndio estava terminado. Foi retirada uma senhora de um outro
edifício vizinho devido à envolvência e inalação de fumos. Foi fácil de
combater devido à hora a que ocorreu e também pelos acessos facilitados.”
A combustão foi combatida pelas
corporações de Bombeiros Sapadores de Coimbra, Bombeiros Voluntários de Coimbra
e Bombeiros de Voluntários de Brasfemes.
FOI-SE A ÚLTIMA OFICINA DE ELECTRICISTA DE AUTOMÓVEIS
Por
coincidência, na edição de hoje do jornal O Despertar escrevo que o Delfim
Taborda era o último sobrevivente de uma profissão em desaparecimento, no apoio
à parte eléctrica em automóveis, na Baixa. Há vinte anos havia vários profissionais
neste ramo de serviços. Este incêndio, nesta noite, apagou o que restava da
memória deste ofício, nesta zona antiga. Naturalmente abalado pelo triste acontecimento, Delfim
foi adiantando que lá ficou tudo, baterias de automóveis, ferramentas e só por
sorte não ficou nenhuma viatura. Os prejuízos são imensos mas que não sabe adiantar
o seu montante.
A BAIXA É UM GIGANTE COM PÉS DE BARRO
Quando tentamos fazer perguntas aos chefes de
bombeiros sobre a área envolvente da Baixa e maioritariamente com edificado em
mau estado e a notória predisposição para a ignição, em corte, respondem: “não vá por aí! Não vale a pena falar nisso.
Temos de continuar a rezar para que, um destes, não haja uma tragédia de lastro
incomensurável”. Até agora, talvez devido à prontidão dos soldados da paz,
todos temos tido sorte e ainda não aconteceu a repetição do fogo do Chiado, em
1988, em Lisboa.
Numa zona histórica com prédios
centenários, com muitas paredes interiores em enxaimel –técnica ancestral de tábuas
cruzadas e cal-, pisos em madeira e sem seguro de garantia patrimonial futura,
a questão é: o que se poderia fazer para minimizar o previsível?
Primeiro, como as seguradoras fogem, como o
diabo da cruz, de segurar estes edifícios –o normal é não apresentarem
propostas ou, se o fizerem, os custos do prémio são tão absurdos que nunca se
realizam- poderia a autarquia desenvolver esforços para negociar um seguro
global e colectivo para esta zona de risco. Com o envolvimento dos
proprietários particulares, estes pagando valores razoáveis, deveria tentar negociar uma cobertura para todos os
edifícios. Pelo menos com um valor mínimo que, em caso de
sinistro, garantisse que os proprietários recuperariam uma parte do perdido e
que lhes permitisse avançar para a restauro.
Por outro lado, sem o estigma da
posse administrativa e, como até há poucos anos, usada com espada de Dâmocles, de
ameaça aos possuidores, a parte frágil e sem defesa, deveria a edilidade,
através do pelouro da habitação, sentar à mesa todos os interessados em
resolver esta dificuldade que urge e é, a cada dia que passa, mais um barril de
pólvora. Não há problemas irresolúveis, pelo contrário, há incapacidade dos
intervenientes em resolvê-los. Até aqui temos tido dois blocos inamovíveis. Um,
representado pelos donos das edificações, sem dinheiro para alterar seja o que
for e presos a um imobilismo incapacitante, não arrendam os locados porque
estes não possuem os requisitos mínimos de habitabilidade e, por isso, as casas
permanecem abandonadas há décadas. Outro, desempenhado pela autarquia, está o
poder iluminado do “quero, posso e mando”.
Com o Novo Regime de Arrendamento Urbano erguido em riste, pronto a fazer da
lei um esquadro aplicável a todos por igual e sem levar em conta que cada caso
é um caso, que na sua especificidade não se pode tratar por igual o que é intrinsecamente
diferente, e que o mérito de uma solução reside na aplicação da legislação a
contento das partes em confronto e não na sua facilitista imposição pura e dura.
Do meu ponto de vista, saliento que desde que Francisco Queirós é vereador da
habitação a sua actuação tem sido mais tolerante e humanista para os senhorios do
que o anterior responsável pelo pelouro. Numa visão estalinista e anacrónica, por
parte da Câmara Municipal, até há poucos anos qualquer dono de um qualquer
barracão era tratado como um grande capitalista.
Por outro lado ainda, e à espera de uma resolução
adiada, há dezenas de prédios na Baixa em que o único espaço que está activo é
o rés-do-chão com estabelecimento comercial e cuja entrada para os pisos
superiores é através da loja. Muitos dos andares, para além de decrépitos e
cheios de lixo e a constituir um foco de perigosidade, estão a ser um ónus
pesado para os comerciantes já que o valor tributável em sede de EMI, Imposto
Municipal sobre Imóveis, e atribuído pelas Finanças engloba o prédio por
inteiro e o senhorio, naturalmente, faz repercutir a sua incidência ao
arrendatário. Servindo a edilidade como mediadora, é urgente criar uma entrada
comum para dois prédios contíguos e dar utilidade a estes espaços habitacionais
vazios e sem prestabilidade social. É que, para além disso, se a letargia continuar vamos assistir a mais algumas falências nos próximos tempos.
É preciso flexibilizar ainda mais o
licenciamento das obras particulares nesta área de antanho. É necessário ter a
sensibilidade de sentir que comerciantes e proprietários estão esgotados e na
berma do precipício. Basta, por exemplo, uma intimação da fiscalização
camarária para fazer transbordar o copo. Há vidas humanas em jogo. Para além
das obrigações materiais há cidadãos que querem participar se lhe forem dados
meios acessíveis para continuarem a viver. Guiados pela generosidade, todos, temos
de ser audazes e capazes de criar soluções possíveis para casos impossíveis e
sempre que esteja em jogo o bem comum. Se assim não for, se não dermos um pouco
de nós para derrubar barreiras, as zonas velhas das cidades, tais como as
conhecemos, inevitavelmente vão desaparecer como centros de memória e convivência
humana.
Segundo, numa altura em que a construção civil,
como motor da economia, atravessa a sua maior crise de identidade, não se
entende que o Governo continue a assobiar para o lado e não desenvolva um
programa de crédito a custo zero para as zonas velhas –mas com contrapartida de
rendas condicionadas com tecto máximo pré-negociado. A maioria dos
proprietários de muitas destas casas são herdeiros sem dinheiro para mudar uma
telha –em alguns casos chega à dezena de mandatários para o mesmo locado- e
cuja transmissão foi um ónus e não uma benesse. Sem meios financeiros e
completamente impossibilitados de recuperar seja o que for sentem-se perdidos
num labirinto sem saída.
Se nada for feito, como dizem os bombeiros, um
dia destes assistimos a uma tragédia e um quarteirão pode explodir como um
paiol de dinamite. O melhor é mesmo continuar a orar a todos os santinhos para
que a deflagração seja minimizada. O problema é se eles se distraem e há uma
catástrofe. Nessa altura, como já é normal, vai fazer-se tudo a correr. É
triste, não é?
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