“Certamente
que já várias vezes você passou por mim na rua e não me contemplou. Interrogo,
também por que haveria de me ter notado? Sou um tipo vulgar, no aspecto, igual
a tantos portugueses que, como eu, se arrastam pelas pedras da calçada em busca
de um simples olhar. Vou contar a minha história. Chamo-me Marek Adam Kepacz
–tratam-me por Marco. Nasci na Polónia em 1958. Em 1980 assisti ao germinar do
Sindicato Solidariedade, fundado por Lech Walesa nos Estaleiros Lenin, em
Gdansk, e à sua luta de resistência civil pela causa dos direitos dos
trabalhadores. Até aos 23 anos, na minha terra, estudei, trabalhei a tempo
inteiro e nas horas vagas tocava acordeão. No meu país de origem aprendíamos
música desde os bancos da escola. Alegadamente, como eu tinha talento, e
aconselhado pela professora, o meu pai pagou para eu continuar a estudar o
solfejo. Durante alguns anos fiz parte de um grupo de baile. Entretanto, como
não vislumbrasse o meu futuro com nitidez, e a carestia da vida e a falta de
trabalho fosse uma constante, em 1981, com 23 anos, parti para Itália em busca
de uma vida melhor. Durante 15 anos fui funcionário da fábrica FIAT, em
Florença, e fundei um grupo de músicos de rua. Éramos quatro, saxofone,
guitarra baixo, violino e eu tocava acordeão. A música foi sempre o meu
resguardo espiritual. Enquanto por lá permaneci fui acompanhando o combate
travado por João Paulo II, declarado santo em 2014, contra o regime totalitário
vigente. Em 1983, vibrei com a atribuição do prémio Nobel da Paz ao fundador do
Solidariedade pela sua coragem em enfrentar o regime pró-soviético. Em 1989
presenciei a queda do comunismo, desmoronamento do bloco de leste, ascensão de
Lech Walesa a presidente da República e acreditei num destino melhor para a
minha pátria. Em 1996 a fábrica onde laborava, em Florença, entrou em
dificuldades, despediram pessoal e regressei à Polónia, já com Walesa
apeado do poder e em pré-rotura com a organização sindical que o elevou e
transformada em partido político. Fui trabalhar para a construção civil e por
lá me mantive até 2009, quando a situação económica do país começou a piorar e
senti que tinha de dar uma volta à minha vida. Com 51 anos, mais uma vez, peguei
na mala e, tocado de força e alma cheia, abalei e aterrei em Portugal. Sempre
fui um sonhador –os artistas são assim, você sabe?- e sempre acreditei que uma
pessoa imagina, luta para a sua concretização e as coisas acontecem. Mas em
Lisboa não foi assim. Não havia trabalho para mim, que vinha de fora. Mais uma
vez a música, a minha música, foi o meu mar da subsistência possível.
Sobrevivendo conforme podia e com a saúde a debilitar-se –tive dois AVC,
Acidente Vascular Cerebral-, durante quatro anos, em duo, toquei na rua com um
ucraniano. Emprestou-me um acordeão e ele tocava concertina. Até que, como
começou a não dar para viver, o meu amigo regressou à Ucrânia. E com ele foi o
instrumento que me alimenta a alma. Vim para Coimbra há cerca de um ano. Tive fé
que aqui conseguiria ganhar dinheiro para conseguir comprar um acordeão e viver
melhor do que na capital. Mas mais uma vez a minha fantasia falhou. Recebo
178,80 euros de RSI, Rendimento Social de Inserção, pago de renda por um quarto
120,00 e gasto mais 25 euros em medicamentos por mês. Mal dá para eu comer na
Cozinha Económica. Mas eu passo bem! Gosto muito da cidade. É aqui que quero
morrer. Esta é a minha segunda terra. Custa-me muito é não ter um acordeão para
eu tocar na rua e poder ganhar uns trocos. Sem o instrumento sinto-me amputado,
metade de mim. Acho que dava a minha vida para poder tocar todos os dias. Este
acordeão que aparece na fotografia foi do Paolo, um reconhecido músico de rua e
que regressou à Roménia há cerca de dois anos, mas está avariado. Se estivesse
em condições de tocar, mais que certo, este texto de rogação não surgiria. Será
que o leitor não terá uma forma de me ajudar? Por favor!”
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