terça-feira, 17 de março de 2015

A VIDA DE MARCO POR UM ACORDEÃO





“Certamente que já várias vezes você passou por mim na rua e não me contemplou. Interrogo, também por que haveria de me ter notado? Sou um tipo vulgar, no aspecto, igual a tantos portugueses que, como eu, se arrastam pelas pedras da calçada em busca de um simples olhar. Vou contar a minha história. Chamo-me Marek Adam Kepacz –tratam-me por Marco. Nasci na Polónia em 1958. Em 1980 assisti ao germinar do Sindicato Solidariedade, fundado por Lech Walesa nos Estaleiros Lenin, em Gdansk, e à sua luta de resistência civil pela causa dos direitos dos trabalhadores. Até aos 23 anos, na minha terra, estudei, trabalhei a tempo inteiro e nas horas vagas tocava acordeão. No meu país de origem aprendíamos música desde os bancos da escola. Alegadamente, como eu tinha talento, e aconselhado pela professora, o meu pai pagou para eu continuar a estudar o solfejo. Durante alguns anos fiz parte de um grupo de baile. Entretanto, como não vislumbrasse o meu futuro com nitidez, e a carestia da vida e a falta de trabalho fosse uma constante, em 1981, com 23 anos, parti para Itália em busca de uma vida melhor. Durante 15 anos fui funcionário da fábrica FIAT, em Florença, e fundei um grupo de músicos de rua. Éramos quatro, saxofone, guitarra baixo, violino e eu tocava acordeão. A música foi sempre o meu resguardo espiritual. Enquanto por lá permaneci fui acompanhando o combate travado por João Paulo II, declarado santo em 2014, contra o regime totalitário vigente. Em 1983, vibrei com a atribuição do prémio Nobel da Paz ao fundador do Solidariedade pela sua coragem em enfrentar o regime pró-soviético. Em 1989 presenciei a queda do comunismo, desmoronamento do bloco de leste, ascensão de Lech Walesa a presidente da República e acreditei num destino melhor para a minha pátria. Em 1996 a fábrica onde laborava, em Florença, entrou em dificuldades, despediram pessoal e regressei à Polónia, já com Walesa apeado do poder e em pré-rotura com a organização sindical que o elevou e transformada em partido político. Fui trabalhar para a construção civil e por lá me mantive até 2009, quando a situação económica do país começou a piorar e senti que tinha de dar uma volta à minha vida. Com 51 anos, mais uma vez, peguei na mala e, tocado de força e alma cheia, abalei e aterrei em Portugal. Sempre fui um sonhador –os artistas são assim, você sabe?- e sempre acreditei que uma pessoa imagina, luta para a sua concretização e as coisas acontecem. Mas em Lisboa não foi assim. Não havia trabalho para mim, que vinha de fora. Mais uma vez a música, a minha música, foi o meu mar da subsistência possível. Sobrevivendo conforme podia e com a saúde a debilitar-se –tive dois AVC, Acidente Vascular Cerebral-, durante quatro anos, em duo, toquei na rua com um ucraniano. Emprestou-me um acordeão e ele tocava concertina. Até que, como começou a não dar para viver, o meu amigo regressou à Ucrânia. E com ele foi o instrumento que me alimenta a alma. Vim para Coimbra há cerca de um ano. Tive fé que aqui conseguiria ganhar dinheiro para conseguir comprar um acordeão e viver melhor do que na capital. Mas mais uma vez a minha fantasia falhou. Recebo 178,80 euros de RSI, Rendimento Social de Inserção, pago de renda por um quarto 120,00 e gasto mais 25 euros em medicamentos por mês. Mal dá para eu comer na Cozinha Económica. Mas eu passo bem! Gosto muito da cidade. É aqui que quero morrer. Esta é a minha segunda terra. Custa-me muito é não ter um acordeão para eu tocar na rua e poder ganhar uns trocos. Sem o instrumento sinto-me amputado, metade de mim. Acho que dava a minha vida para poder tocar todos os dias. Este acordeão que aparece na fotografia foi do Paolo, um reconhecido músico de rua e que regressou à Roménia há cerca de dois anos, mas está avariado. Se estivesse em condições de tocar, mais que certo, este texto de rogação não surgiria. Será que o leitor não terá uma forma de me ajudar? Por favor!”




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