LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "A BAIXA DE COIMBRA TODA A DANÇAR", deixo também a crónica "A BAIXA EM GUARDA E À ESPERA
A BAIXA DE COIMBRA TODA A DANÇAR
Como pássaro em voo rasante, Leonor
Mamede fala ligeiro como rápido é o seu pensar. As ideias despejadas nas
palavras brotam de supetão como água em nascente proveniente do interior da
terra e em milagre da natureza. Ou se não chegar esta metáfora para mostrar o
espírito inquieto e criador desta “máquina” de sonhos recuamos até ao século
XVI e transcrevemos a poesia de Camões: “Descalça vai para a fonte Leonor, pela
verdura; vai formosa e não segura”. Com uma diferença substancial: esta Leonor
de que falo, porque a conheço muito bem, contrariando o poeta, é formosa e
muito segura.
Leonor é licenciada em Serviço
Social com formação na área da dança há cerca de 25 anos. Nos meios culturais é
mais conhecida que o Papa. Nas suas variantes de dança clássica, dança de
salão, dança medieval, dança tradicional portuguesa, dança jazz, dança terapia
e bio dança, já deu aulas a meia cidade. Para além destas valências também dá lições
de arte dramática e expressão corporal. Com a sua simpatia imanente, Leonor é
uma força viva da natureza, de centrifugação, que agita tudo e todos em seu
redor. Basta nomear o seu nome no Centro Norton de Matos ou no Ateneu de
Coimbra e, como fórmula mágica de “perlimpimpim”, ansiosamente todos os utentes
associados destas duas agremiações olharão em redor para poisarem os seus olhos
nesta musa de encantamento e animação.
Há poucas semanas foi desafiada
por um grupo de senhoras para que criasse na Baixa um projeto de danças de
salão. Como seria de adivinhar, Leonor anuiu imediatamente e exclamou: “vamos a
isso!”. Mas ainda disse mais: “há uns anos encenei no Ateneu um grupo de
residentes da Alta em teatro de rua. Era uma peça que retratava a cidade há
meio-século. Gostava tanto de a repetir! A performance passava-se na Estação
Nova, por entre gente apressada, de malas na mão e ilusões em catadupa, à
chegada de um comboio. Mal a composição estancou, de vários pontos da gare,
começaram a surgir e a ouvir-se vários pregões na boca de vendedores com
profissões já desaparecidas ou em vias disso, vestidos a rigor e em cópia de
época: “olhe a arrufada de Coimbra!”; “água fresca do Mondego!”; “compre
bordados de Almalaguês, freguês!”; “tenho aqui o 31, é o último, vai andar à
roda!”; “Afie a sua tesoura, menina!” –acompanhado pelo som melódico da flauta
de pan. “Você acredita que parou tudo? Exceto o chefe da estação, ninguém
pensou que se tratava de uma encenação. Só queria que você visse! Foi
fantástico!”
Leonor quer ajudar esta zona
velha. O que a move não é o interesse egoísta, mas sim o lado social. O que a
faz sonhar é a possibilidade de ajudar a revitalizar e pôr a Baixa a mexer. “O
meu coração divide-se entre a colina altaneira e este sopé encantado. Estou
como o outro, tenho dois amores e não sei de qual gosto mais!”, enfatiza no
meio de uma estridente gargalhada. Mas há um pequeno problema: falta-lhe um
espaço amplo para ensaiar e colocar todos estes planos em prática. E agora?
Será que, tendo o mais importante que é a vontade e o saber fazer, vamos deixar
perder estas magníficas ideias para reanimar o centro histórico?
O RANCHO DE COIMBRA É UMA POSSIBILIDADE?
Depois de muito se pensar,
chegou-se à conclusão de que a Baixa, com toda esta nomenclatura de comércio e
serviços, onde exercem este mester milhares de pessoas, de facto, contrariando
o seu passado, não tem muita oferta para desenvolver as artes performativas amadoras.
De repente, alguém se lembrou de um espaço magnífico, carregado de história e
presente na memória de várias gerações: o Rancho de Coimbra, na Rua do Moreno.
Este velho salão, fundado em 5 de Julho de 1938, embora tenha uma parte
consignada à Associação Integrar para banhos públicos, está encerrado na sua
parte de animação cultural.
Em face do projeto de Leonor Mamede, confrontado
com a possibilidade desta tão gloriosa agremiação poder retomar novamente a sua
função social na revivificação da Baixa, Carlos Clemente, presidente da direção
deste grande clube, disse o seguinte: “O Rancho de Coimbra está aberto à
sociedade civil, e por conseguinte aos comerciantes, para fortalecer as atividades
culturais da nossa Baixa e da cidade de Coimbra. A coletividade a que presido
está disponível para ajudar a desenvolver programas socioculturais. Esse é o
fim a que se destina.”
Ora, em resumo, sendo assim o que
falta para avançar? Bom, atendendo às palavras de Leonor, pelos vistos, faltam
apenas pares masculinos para as senhoras. Quem tem medo de dançar? Quem abre a
pista do velhinho Rancho de Coimbra?
A BAIXA EM GUARDA E À ESPERA
Num caldinho tonitruante, em
cenário de guerra, o som das sirenes dos bombeiros, o uivar do vento, o
estalejar de vidros na calçada a desprenderem-se do que restava de umas janelas
que já foram e o atroado de umas chapas zincadas, em mistura aterradora,
constituíam o barulho de fundo deste Sábado, último, na Baixa da cidade.
De vez em quando o repetido ruído
arrastado de uma chapa a cair numa rua próxima mostrava que muitos dos telhados
do centro histórico, em triste remedeio de proprietários falidos, em
precariedade invisível, estão cobertos deste zinco de telhas faz de conta.
Na Rua Velha o beiral de um
centenário edifício decidiu mostrar que estava cansado de tanto ostracismo e
veio parar ao chão. No Largo do Romal a mesma coisa. Como que a chamar a
atenção para um protagonismo perdido, também um beirado de um edifício deu em
render-se à força do vento e claudicar.
Para os poucos aventureiros que
ousaram sair de casa para visitar a Baixa, entre um guarda-chuva fustigado pela
ciclópica ventania e um rosto fechado de má-disposição, restava um praguejar
contra São Pedro e a sua falta de vontade perante os simples. De minutos a
minutos ora tocava um alarme, ora, em piscar de indecisão, a luz elétrica
ameaçava deixar tudo às escuras, ora mais um lamento de uma sirena em busca de
ajuda a alguém que sofria cortava a inquietude da paisagem que, naturalmente,
nunca foi bucólica. Na Praça do Comércio, junto à Taberninha, um alçado de um
candeeiro de iluminação pública, em ferro, por pouco não caiu em cima de um
velho acompanhado com uma criança. Nas Escadas de São Tiago um outro lampião,
de porta aberta e escaqueirada, quem sabe em solidariedade para com a Igreja do
mesmo nome que, pelo bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, finalmente a tornou
acessível ao culto e aos visitantes, teimava em balouçar por cima das cabeças
de quem passava.
Neste sábado, durante a manhã, tal
como o país colocado em alerta vermelho pelo Instituto que já se chamou de
meteorologia, a Baixa esteve irreconhecível. A sua incomodativa e artificial pacatez
de modorra foi substituída por sons desafinados de uma orquestra natural. Entre
um assobio do vento, o bater de pratos em chapa por baquetas imaginárias, o
ritmado melancólico dos pingos de chuva grossa a chibatar as ravessas e o
estilhaçar de vidros a ecoar, era notória a carência de um tom grave, de tenor.
Se estivesse a trovejar o conjunto, mesmo incipiente na melodia, estaria
completo numa divisão (des)harmónica. No velho Museu Municipal do Chiado, umas
tarjas laterais, alegóricas ao centenário, como velas de caravela
renascentista, largando as ataduras de pendentes, dançavam ao sabor da onda
frenética.
Com a cara colada no vidro do
interior de uma loja, a fixar o vazio, um comerciante, de 60 e poucos anos,
pensava para si que já nada é como dantes. “Até a natureza, quem sabe farta das
tropelias dos humanos, decidiu quebrar o pacto de paz que tem mantido com o
retângulo há décadas. Tudo mudou; tudo passou. Que saudades do tempo em que o
tempo, sem avisar, rompia a quietude de uma vida imprevisível. Não havia
alertas de vermelho, laranja ou outro coloreado qualquer. Agora tudo é
previsível pela ciência matemática e o tempo, sem tempo, perdeu encantamento.
Em paradoxo, ai que saudades de uma enxurrada nestas ruas e becos manhosos! É
tudo perfeito, harmoniosamente concebível até ao milimétrico segundo.
Continuava a pensar o comerciante,
“mas isto é tudo uma ilusão. Quando menos se esperar a Natureza vai barafustar.
De aqui em diante, pode esperar-se tudo da rainha da biologia, senhora de todas
as vidas. Quem sabe inundações, tremores de terra e outras deslocações
telúricas com implicações sociológicas. Ai como andamos todos enganados! De nada
vale tentar alterar o curso natural das coisas. O equilíbrio será sempre
precário e, mais tarde ou mais cedo, tombarão para o lado e retomarão o seu
leito natural de como sempre foram. É como se a natureza, gozando com o esforço
humano, deixasse a impressão de que o homem comanda tudo e todos mas no fim
quem decide é a rainha-mãe. Ai se eu pudesse voltar atrás!”. Até parecia que
naquelas rugas vincadas de preocupação, mal-amanhadas e semeadas em dia de suão,
conseguíamos ler as imaginações do velho profissional do balcão. “O que eu passei
para conseguir tudo o que conquistei e agora, pelos desmesurados desígnios do
homem terreno, ambicioso que nos rege e haverá sempre de comandar, e pelo
abandono de Deus, neste prenúncio de calamidade temporal, sinto-me sozinho,
como alma errante num purgatório em busca de um paraíso qualquer. Tantos
momentos que não vivi; tantos erros que cometi; tantas benesses que a alguém subtraí.
E para quê? Hoje, como pássaro engaiolado, estou preso nesta masmorra e à mercê
do carrasco, divino ou terrestre. Se ao menos a Natureza me ajudasse. Já não
quero muito: simplesmente um sol brilhante que me aqueça a alma!” –naquele entremeio,
um vidro caiu com intrépido fragor e desfez-se em mil partículas. Em analogia,
pensou o velho lobo da compra e venda em remate final: “tal como este vidro
agora partido, “sou aquele que numa noite foi um dia, noutro dia foi alegria,
em meio-dia já sofria e num momento desaparecia.”
Como a querer desfazer todas as
teses anteriormente apreendidas, novamente a Natureza voltou a baralhar e a dar
de novo impondo a sua suprema vontade. A tarde revelou-se calma, tépida, e sem
chover. Dando uma lição ao homem que perante o mau tempo desapareceu da zona
velha, os pombos, calmamente e sem mostrarem ansiedade, retomaram os seus
beirais e o seu rumorejar invadiu novamente as ruas do velho burgo.
Uma velhinha, a senhora Mercês, cuja
única ambição é pedir ao tempo que lhe dê tempo para poder continuar a vender
os seus bolinhos de Ançã, com um grito cristalino em alegria de viver, rompia
este ambiente de marasmo: “ó menino, compra-me um bolinho?”
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