Num caldinho tonitruante, em
cenário de guerra, o som das sirenes dos bombeiros, o uivar do vento, o estalejar
de vidros na calçada a desprenderem-se do que resta de umas janelas que já
foram e o atroado de umas chapas zincadas, em mistura aterradora, constituem o
barulho de fundo deste Sábado na Baixa da cidade.
De vez em quando o repetido ruído
arrastado de uma chapa a cair numa rua próxima mostra que muitos dos telhados
do centro histórico, em triste remedeio de proprietários falidos, em
precariedade invisível, estão cobertos deste zinco de telhas faz de conta.
Na Rua Velha o beiral de um
centenário edifício decidiu mostrar que estava cansado de tanto ostracismo e
veio parar ao chão. No Largo do Romal a mesma coisa. Como que a chamar a atenção
para um protagonismo perdido, também um beirado de um edifício deu em render-se
à força do vento e claudicar.
Para os poucos aventureiros que
ousaram sair de casa para visitar a Baixa, entre um guarda-chuva fustigado pela
ciclópica ventania e um rosto fechado de má-disposição, resta um praguejar
contra São Pedro e a sua falta de vontade perante os simples. De minutos a
minutos ora toca um alarme, ora, em piscar de indecisão, a luz eléctrica ameaça
deixar tudo às escuras, ora mais um lamento de uma sirena em busca de ajuda a
alguém que sofre corta a inquietude da paisagem que, naturalmente, nunca foi
bucólica. Na Praça do Comércio, junto à Taberninha, um alçado de um candeeiro
de iluminação pública, em ferro, por pouco não caiu em cima de um velho
acompanhado com uma criança. Nas Escadas de São Tiago um outro lampião, de
porta aberta e escaqueirada, quem sabe em solidariedade para com a Igreja do
mesmo nome que, pelo bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, finalmente a tornou
acessível ao culto e aos visitantes, teima em balouçar por cima das cabeças de
quem passa.
Hoje, durante a manhã, tal como o
país colocado em alerta vermelho pelo Instituto que já se chamou de
meteorologia, a Baixa está irreconhecível. A sua incomodativa e artificial pacatez
de modorra foi substituída por sons desafinados de uma orquestra natural. Entre
um assobio do vento, o bater de pratos em chapa por baquetas imaginárias, o
ritmado melancólico dos pingos de chuva grossa a chibatar as ravessas, e o
estilhaçar de vidros a ecoar, é notória a carência de um tom grave, de tenor.
Se estivesse a trovejar o conjunto, mesmo incipiente na melodia, estaria
completo numa divisão (des)harmónica. No velho Museu Municipal do Chiado, umas
tarjas laterais, alegóricas ao centenário, como velas de caravela
renascentista, largando as ataduras de pendentes, dançam ao sabor da onda
frenética.
Com a cara colada no vidro do
interior de uma loja, a fixar o vazio, um comerciante, de 60 e poucos anos,
pensa para si que já nada é como dantes. Até a natureza, quem sabe farta das
tropelias dos humanos, decidiu quebrar as regras que tem mantido com o
rectângulo há várias décadas. Tudo mudou; tudo passou. Que saudades do tempo em
que o tempo, sem avisar, rompia a quietude de uma vida imprevisível. Não havia
alertas de vermelho, laranja ou outro coloreado qualquer. Agora tudo é
previsível pela ciência matemática e o tempo, sem tempo, perdeu encantamento. “Ai
que saudades de uma enxurrada nestas ruas e becos manhosos! É tudo perfeito,
harmoniosamente concebível até ao milimétrico segundo.
Continua a pensar o comerciante,
mas isto é tudo uma ilusão. Quando menos se esperar a Natureza vai barafustar.
De aqui em diante, pode esperar-se tudo da rainha da biologia, senhora de todas
as vidas. Quem sabe inundações, tremores de terra e outras deslocações
telúricas com implicações sociológicas. Continua a reflectir este mestre do
deve e do haver, “Ai como andamos todos enganados! De nada vale tentar alterar
o curso natural das coisas. O equilíbrio será sempre precário e, mais tarde ou
mais cedo, tombarão para o lado e retomarão o seu leito de como sempre foram. É
como se a natureza, gozando com o esforço humano, deixasse a impressão de que o
homem comanda tudo e todos mas no fim quem decide é a rainha-mãe. Ai se eu
pudesse voltar atrás!”, até parece que naquelas rugas vincadas de preocupação
mal amanhadas e semeadas em dia de suão conseguimos ler as imaginações do
velho profissional do balcão. “O que eu passei para conseguir tudo o que
conquistei e agora, pelos desígnios do homem terreno, ambicioso que nos rege e
haverá sempre de comandar, e pelo abandono de Deus, neste prenúncio de calamidade
temporal, sinto-me sozinho, como alma errante num purgatório em busca de um paraíso
qualquer. Tantos momentos que não vivi; tantos erros que cometi; tantas
benesses que a alguém subtraí. E para quê? Hoje, como pássaro engaiolado, estou
preso nesta masmorra e à mercê do carrasco, divino ou terrestre. Se ao menos a
Natureza me ajudasse. Já não quero muito: simplesmente um sol brilhante que me
aqueça a alma!” –neste entremeio, um vidro cai com intrépido fragor e desfaz-se
em mil partículas. Em analogia, pensa o velho lobo da compra e venda em remate
final: “tal como este vidro agora partido, “sou aquele que numa noite foi um
dia, noutro dia foi alegria, em meio-dia já sofria e num momento desaparecia.”
Como a querer desfazer todas as
teses anteriormente apreendidas, novamente a Natureza volta a baralhar e a dar
de novo, impondo a sua suprema vontade. A tarde está calma, tépida, sem chover.
Dando uma lição ao homem que perante o mau tempo desapareceu da zona velha, os
pombos, calmamente e sem mostrarem ansiedade, retomaram os seus beirais e o seu
rumorejar invadiu novamente as ruas do velho burgo.
Uma velhinha, a senhora Mercês, cuja
única ambição é pedir ao tempo que lhe dê tempo para poder continuar a vender os
seus bolinhos de Ançã, com um grito cristalino rompe este ambiente de marasmo: “ó menino, compra-me um
bolinho?”
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