sábado, 19 de janeiro de 2013

A BAIXA EM GUARDA E À ESPERA DE UM OUTRO TEMPO




 Num caldinho tonitruante, em cenário de guerra, o som das sirenes dos bombeiros, o uivar do vento, o estalejar de vidros na calçada a desprenderem-se do que resta de umas janelas que já foram e o atroado de umas chapas zincadas, em mistura aterradora, constituem o barulho de fundo deste Sábado na Baixa da cidade.
De vez em quando o repetido ruído arrastado de uma chapa a cair numa rua próxima mostra que muitos dos telhados do centro histórico, em triste remedeio de proprietários falidos, em precariedade invisível, estão cobertos deste zinco de telhas faz de conta.
Na Rua Velha o beiral de um centenário edifício decidiu mostrar que estava cansado de tanto ostracismo e veio parar ao chão. No Largo do Romal a mesma coisa. Como que a chamar a atenção para um protagonismo perdido, também um beirado de um edifício deu em render-se à força do vento e claudicar.
Para os poucos aventureiros que ousaram sair de casa para visitar a Baixa, entre um guarda-chuva fustigado pela ciclópica ventania e um rosto fechado de má-disposição, resta um praguejar contra São Pedro e a sua falta de vontade perante os simples. De minutos a minutos ora toca um alarme, ora, em piscar de indecisão, a luz eléctrica ameaça deixar tudo às escuras, ora mais um lamento de uma sirena em busca de ajuda a alguém que sofre corta a inquietude da paisagem que, naturalmente, nunca foi bucólica. Na Praça do Comércio, junto à Taberninha, um alçado de um candeeiro de iluminação pública, em ferro, por pouco não caiu em cima de um velho acompanhado com uma criança. Nas Escadas de São Tiago um outro lampião, de porta aberta e escaqueirada, quem sabe em solidariedade para com a Igreja do mesmo nome que, pelo bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, finalmente a tornou acessível ao culto e aos visitantes, teima em balouçar por cima das cabeças de quem passa.
Hoje, durante a manhã, tal como o país colocado em alerta vermelho pelo Instituto que já se chamou de meteorologia, a Baixa está irreconhecível. A sua incomodativa e artificial pacatez de modorra foi substituída por sons desafinados de uma orquestra natural. Entre um assobio do vento, o bater de pratos em chapa por baquetas imaginárias, o ritmado melancólico dos pingos de chuva grossa a chibatar as ravessas, e o estilhaçar de vidros a ecoar, é notória a carência de um tom grave, de tenor. Se estivesse a trovejar o conjunto, mesmo incipiente na melodia, estaria completo numa divisão (des)harmónica. No velho Museu Municipal do Chiado, umas tarjas laterais, alegóricas ao centenário, como velas de caravela renascentista, largando as ataduras de pendentes, dançam ao sabor da onda frenética.
Com a cara colada no vidro do interior de uma loja, a fixar o vazio, um comerciante, de 60 e poucos anos, pensa para si que já nada é como dantes. Até a natureza, quem sabe farta das tropelias dos humanos, decidiu quebrar as regras que tem mantido com o rectângulo há várias décadas. Tudo mudou; tudo passou. Que saudades do tempo em que o tempo, sem avisar, rompia a quietude de uma vida imprevisível. Não havia alertas de vermelho, laranja ou outro coloreado qualquer. Agora tudo é previsível pela ciência matemática e o tempo, sem tempo, perdeu encantamento. “Ai que saudades de uma enxurrada nestas ruas e becos manhosos! É tudo perfeito, harmoniosamente concebível até ao milimétrico segundo.
Continua a pensar o comerciante, mas isto é tudo uma ilusão. Quando menos se esperar a Natureza vai barafustar. De aqui em diante, pode esperar-se tudo da rainha da biologia, senhora de todas as vidas. Quem sabe inundações, tremores de terra e outras deslocações telúricas com implicações sociológicas. Continua a reflectir este mestre do deve e do haver, “Ai como andamos todos enganados! De nada vale tentar alterar o curso natural das coisas. O equilíbrio será sempre precário e, mais tarde ou mais cedo, tombarão para o lado e retomarão o seu leito de como sempre foram. É como se a natureza, gozando com o esforço humano, deixasse a impressão de que o homem comanda tudo e todos mas no fim quem decide é a rainha-mãe. Ai se eu pudesse voltar atrás!”, até parece que naquelas rugas vincadas de preocupação mal amanhadas e semeadas em dia de suão conseguimos ler as imaginações do velho profissional do balcão. “O que eu passei para conseguir tudo o que conquistei e agora, pelos desígnios do homem terreno, ambicioso que nos rege e haverá sempre de comandar, e pelo abandono de Deus, neste prenúncio de calamidade temporal, sinto-me sozinho, como alma errante num purgatório em busca de um paraíso qualquer. Tantos momentos que não vivi; tantos erros que cometi; tantas benesses que a alguém subtraí. E para quê? Hoje, como pássaro engaiolado, estou preso nesta masmorra e à mercê do carrasco, divino ou terrestre. Se ao menos a Natureza me ajudasse. Já não quero muito: simplesmente um sol brilhante que me aqueça a alma!” –neste entremeio, um vidro cai com intrépido fragor e desfaz-se em mil partículas. Em analogia, pensa o velho lobo da compra e venda em remate final: “tal como este vidro agora partido, “sou aquele que numa noite foi um dia, noutro dia foi alegria, em meio-dia já sofria e num momento desaparecia.”
Como a querer desfazer todas as teses anteriormente apreendidas, novamente a Natureza volta a baralhar e a dar de novo, impondo a sua suprema vontade. A tarde está calma, tépida, sem chover. Dando uma lição ao homem que perante o mau tempo desapareceu da zona velha, os pombos, calmamente e sem mostrarem ansiedade, retomaram os seus beirais e o seu rumorejar invadiu novamente as ruas do velho burgo.
Uma velhinha, a senhora Mercês, cuja única ambição é pedir ao tempo que lhe dê tempo para poder continuar a vender os seus bolinhos de Ançã, com um grito cristalino rompe este ambiente de marasmo: “ó menino, compra-me um bolinho?”

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