(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Sou um pequeníssimo comerciante.
Até 2002 cheguei a ter três funcionários em uma oficina de restauros. Nessa
altura, diariamente, na minha pequena loja, estava eu e a minha esposa. Nos
meses de Agosto e Dezembro, no pico alto das vendas, contratava pelo menos uma pessoa
para nos apoiar no estabelecimento. Como o movimento progressivamente fosse
caindo a pique, fui reduzindo, reduzindo, cortando aqui e ali, recuando, sempre
a recuar, até que cheguei ao fio que divide a terra firme e o abismo. Como Rei
sem Pátria, sem território, sem povo, estou sozinho no meu pequeno negócio. Se
retroceder um pequeno passo que seja caio nas catacumbas da indefinição e perdição.
Ora este meu exemplo, que sinto na pele, infelizmente é extensível à maioria de
pequenos comerciantes que laboram no país e mais concretamente aqui na Baixa de
Coimbra.
E comecei a escrever esta pequena
crónica porque no ano passado paguei cerca de 24 euros pela licença para vender
pratas concedida pela Unidade de Contrastarias, da Imprensa Nacional Casa da
Moeda (INCM). Este ano foi-me apresentada uma conta de 51,89 euros. Em contacto
telefónico directo com a contrastaria, a funcionária, simpática –calculo que já
deve ter instruções para o ser pelas inúmeras reclamações recebidas- lá me foi
dizendo “que era verdade sim. De facto houve um aumento de 90% “-sublinho por
extenso: noventa por cento. Continuando a citar a empregada da INCM, “é que,
não sei se sabe, mas há 23 anos que não aumentávamos as licenças”. Retorqui se
considerava justo este aumento desproporcionado, numa fase em que a procura
rareia e as vendas caem em flecha. Respondeu a senhora: ”sabe há muitos anos
que a Contrastaria do Porto apresenta prejuízos e não pode continuar assim”.
Continuei a interrogar: mas será que uma contrastaria, enquanto entidade de
certificação do Estado, terá obrigatoriamente de dar lucro? Enfatizou a
colaboradora: “mas olhe que a contrastaria é uma Parceria Público Privada.
Embora o Estado detenha uma participação os accionistas não podem continuar com
prejuízo.”
Como se sabe, a partir de
Janeiro, e por força do Orçamento Geral do Estado todos os operadores
comerciais foram obrigados a adquirir material informático ou máquina
registadora emissora de “factura simplificada”. Quem, como eu, não o fez até
agora, por motivos de repensar o seu futuro ou pelo esgotamento do material,
teve de mandar fazer uns livros de facturas simplificadas numa tipografia. Por
dois livros e uns cartões paguei, com IVA incluído, 104,55 euros. Adquirir uma
nova máquina registadora, em preços médios, se não for muito elaborada, custa
cerca de 500 euros e se for superior pode ir até ao dobro. Se optar por
programa certificado e computador rondará os 1500 euros. Então entre várias
interrogações, começamos pela mais óbvia: esta gente que governa, que está
dentro dos gabinetes ministeriais, conhece alguma coisa da economia real da
pequeníssima empresa? Saberá o afogo financeiro em que se encontram os pequenos
comerciantes como eu?
Quando se apela constantemente à
poupança no país será lógico enviar para o lixo milhares de máquinas
registadoras cuja única mudança subsiste, apenas e só, na alteração de “venda a
dinheiro” para “factura simplificada”? E onde fica a protecção ambiental? Isto
é, os desígnios fiscais, enquanto superior valor, manifestamente devem e podem
passar por cima de vários interesses em conflito?
Outra pergunta mais que óbvia: se
a intenção é levar ao extremo a sensibilização pública de quem compra para
pedir recibo era preciso todo este aparato? Bastava simplesmente apregoar que
quem não emitir recibo, incluindo quem não o solicitar, seria sancionado. Agora
pasme-se de vez: a lei tributária era bem clara, todos os operadores estavam
obrigados a emitir talão de recibo pela venda e já era prescrita multa para
quem não possuísse prova. Aliás, alguns concelhos do país, certamente por
iniciativa dos directores de finanças, já faziam valer esta legislação. Sendo
assim, para que foi necessária toda esta avalanche de novos procedimentos? Só
se pode entender de uma forma: levar a encher os bolsos dos envolvidos,
nomeadamente as tipografias, os vendedores de material electrónico e o Estado,
pela receita cobrada de IVA nas novas transacções.
E, já agora, outra pergunta,
divida por muitas outras: o que pretende o Estado, pelo braço executório do
Governo? Poderemos especular cenários e interrogativas:
1- Acabar
de vez com a pequeníssima, pequena e média empresa e levar ao seu extermínio;
2- Neste
processo de purga criar condições para apenas alguns se aguentarem;
3- Fazer
com que o pequeno comerciante desapareça e no seu lugar, em vez de milhares de
minúsculos, floresçam os grandes grupos económicos;
4- Com
o crescente encerramento de pontos de venda, sobretudo este ano por motivo das
novas medidas orçamentais, é verdade ou não que se assiste à deslocalização
maciça de consumidores dos centros das cidades para os novos centros
comerciais? Estas medidas tiveram ou não por objecto este resultado?
5- De
que vão viver os pequenos operadores obrigados a encerrar pelas arbitrárias
medidas de substituição processuais? Repito que não está em causa a emissão de
recibos, mas antes a obrigação de adquirir novos equipamentos para o mesmo fim
e pela mesma finalidade já anteriormente sancionada pela lei.
6- Esta
medida será acima de tudo ideológica? Isto é, o Estado, através de confisco a
quem trabalha, procura acabar com a independência financeira da chamada classe
média e tornar este grupo, outrora forte e incómodo politicamente, cada vez
mais dependente e controlado pela máquina estatal?
7- Visa-se,
na mesma linha do Estado Novo, tornar salientes alguns grupos económicos que
gerem a economia do país e empobrecer cada vez mais a restante população?
Transformar o acesso ao ensino superior acessível a apenas alguns de maiores
posses; o acesso à saúde será também cada vez mais proporcional à conta
bancária e levará à diminuição da vida e ao aumento da morte entre os cidadãos;
abandono precoce, por motivos de carência económica, do ensino secundário;
aumento desproporcionado da iliteracia –vamos cair no aforismo de que um povo
ignorante é mais fácil de controlar;
8- Aumento
da miséria. Em consequência, dispara a criminalidade. Queda abrupta da
natalidade e progressivo desaparecimento da Nação em termos de importância no
contexto europeu e mundial;
9- O
que vão ser os centros das cidades sem comércio? Neste momento assiste-se a
dois fenómenos só entendíveis no contexto sócio-psicológico de várias crises
que nos atravessam. O primeiro, proporcionalmente, apesar de terem muito mais
público e com maior poder de compra, as rendas praticadas nos centros
comerciais são menores do que nos centros históricos. Os seja, enquanto as
grandes superfícies recuam nos valores de arrendamento, os proprietários na
cidade ou mantêm valores ou pedem mais. O segundo, apesar destes custos serem
incomportáveis, e qualquer candidato ter consciência desse facto, em virtude da
necessidade de trabalhar para sobreviver –já não é para viver-, de uma forma
inconsciente, estas pessoas tornaram-se uma espécie de “kamikases” de morte
anunciada. Antes de morrerem já estão defuntos. E a responsabilidade social dos
proprietários? Onde fica? Curiosamente, neste capítulo das rendas, nem Salazar
foi tão longe.
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