(Imagem da Web)
Viva meu papalvo. Espero que esta
carta te vá encontrar de boa saúde… física, pelo menos, porque mental estás
completamente senil, meu velho. Não te esforces em contraditar-me. Não vale a pena.
Conheço-te melhor do que tu próprio alguma vez almejaste conhecer-te. Não mates
a cabeça em tentar adivinhar quem sou. Basta apenas parares para reflectir. Tu
andas mal, meu! Muito mal, mesmo. Estou profundamente preocupado contigo –acredita, este foi verdadeiramente o motivo por que decidi escrever-te. Bem sei que não
vais ligar nenhuma, porque te conheço bem, mas mesmo assim arrisco enviar-te
esta missiva. Mesmo não sendo presciente, adivinho o teu sofrimento, a tua dor
plasmada no teu rosto hermético que há muito não sorri de vontade. Andas
muito triste, bem sei. Afivelaste essa máscara de solidão há uns anos e, como
ela se te colou à face, nunca mais a largaste. Sei muito bem que, quando
escreves, procuras focalizar os teus pensamentos na vida dos outros. Raramente
falas de ti, da amargura que te corrói as profundezas da alma. De ti, escreves
apenas banalidades, passagens que não despertam o mínimo interesse. Fazes essa
descrição simplista para enganares quem te lê, para que pensem que te conhecem
e que compartilhas as tuas preocupações com eles, mas eu sei que não. Tu falas
muito pouco da tua amargura, dos teus sonhos frustrados, em tentares ser o que
nunca conseguiste. Não descreves essa tua luta surda, obsessiva, em direcção a um
horizonte desconhecido. Pareces um boneco de corda a quem rodaram a pega e
enquanto se não acabar a força continua sempre em frente, mesmo a arrastar-se
pelo solo, meu. Queres provar o quê? A quem? Esquece essa predestinação, meu! O
teu pai já morreu há quase uma vintena de anos e já não quer saber de nada de
ti… se é que alguma vez, enquanto vivo, se preocupou contigo. Não vale a pena
continuar a quereres demonstrar-lhe que, quando ele te dizia que “dormias muito
e nunca serias nada na vida”, estava enganado. Onde quer que ele esteja já viu
certamente. Deixa de te preocupares com os outros. Preocupa-te apenas contigo.
Já estás a ver que essa tua inquietação com quem te rodeia não te conduz a lado
nenhum.
Lembras-te quando o teu pai,
esquinado, completamente bêbado, batia na tua mãe junto ao borralho e tu,
encolhido a pedir às Alminhas para não levares também, fazias uma promessa
solene para ti mesmo de que nunca irias ser assim? Jamais baterias na tua
esposa um dia quando fosses homem? Jamais te embriagarias? De que te valeu
isso? Não seguiste tu o caminho do teu pai, imita o teu filho o avô. Valeu-te
alguma coisa? O que sentiste esta noite quando o foste recolher ao hospital
completamente carregado de álcool e sem dar acordo de si? O que sentiste quando
há tempos, lá em casa, verificaste que todas aquelas garrafas que guardavas
para uma ocasião especial estavam vazias? Não faças essa cara de surpresa, meu.
Eu conheço-te bem. Sei tudo a teu respeito. Eu lamento por ti, acredita mesmo.
Bem sei que tanto te esforçaste para dares aos teus filhos uma vida que não
tiveste. Lembras-te quando fizeste o exame da 4.ª classe, tiveste os teus
primeiros sapatos, calça de terylene e camisa tv, e, para que todos na aldeia
vissem a tua roupa nova, foste sentar-te no patim do adro da capela? Recordas
quando chegaste à cidade com uma saca de pano onde não teria dentro mais do que
medos de falhar no novo emprego e poderes não aguentar, no mínimo um ano? Se
acontecesse o contrário, lá na aldeia, serias considerado um estroina e
valdevinos que não parava em lado nenhum. Estás a visualizar, meu? Consegues
rememorar quando entre os 10 e os 16 anos compravas roupa usada com as gorjetas
que te davam no emprego? E as tuas vestes eram lavadas durante a noite para
vestires no dia seguinte, tantas vezes enxovalhada e húmida? Consegues reviver
o caminhares com uns sapatos, dos mais baratos que havia –do “Campeão Português”
e que custavam 80 escudos, hoje 40 cêntimos- completamente com a sola gasta, um
buraco no meio, e que até evitavas calcares as pedras mais salientes?
Quiseste facultar tudo o que não
tiveste aos teus filhos. Sentias que tinhas obrigação de lhes dares o que não
tiveste. Enquanto criança, nunca o teu aniversário foi comemorado. O Natal e a
Páscoa idem aspas. Nas datas importantes como a comunhão solene, por exemplo,
estiveste sozinho. Nunca esqueceste esse lapso dos teus pais, meu. Pois, como
se tivesses essa memória a queimar-te a mente, para os teus filhos estiveste
sempre nas datas mais importantes das suas vidas. Algumas vezes ias a correr e
chegavas já depois do espectáculo ter começado. Levantavas os braços para eles
verem que estavas lá. Eu sei, meu. Eu acompanhei essa parte da tua história. É
triste, meu, quando às vezes te acusam de não lhes teres dado carinho. É
ofensivo, meu. Tu fizeste tudo para que fossem felizes. Aliás, tenho a certeza
de que, ao longo da tua existência, a tua família esteve sempre presente. Até
te digo sem pestanejar que os interesses deles foram sempre colocados depois
dos teus. Vai ver as cassetes de vídeo, quando eles eram pequenitos e lá se
pode ver, nas brincadeiras, o ar de felicidade comum. Como te podem acusar de
não lhe teres dado afecto? Oferecer um brinquedo que nunca se teve a um filho não
é um acto de carinho? Dar uma camisola de marca que nunca se pode ter é o quê?
Deste de mais, meu. Esse é o problema. Deverias saber que só damos valor às
coisas quando não as temos. E tu deste por não teres tido. Gozavas o sentimento
de posse da mesma forma como se fosse para ti. E eles tiveram tudo o que a
classe média da altura detinha, para que não se sentissem complexados,
inferiorizados, perante os colegas na escola. E tu trabalhavas, trabalhavas
cada vez mais para que nada lhes faltasse. Como a remendar o teu passado,
deste-lhes sapatos, calças e blusões de marca. Tu que não pudeste ir estudar
para o liceu, porque os teus pais eram muito pobres, aprender solfejo – a tua
música era o assobio que sempre te acompanhou a trabalhar e até há uns anos-
deste tudo isso aos teus herdeiros. Recordas quando a tua filha entrou na
faculdade e choraste como uma Madalena? Naquela entrada na universidade tu
sentiste como fosse o teu ingresso. Era a tua projecção existencial que estava
em causa. O preenchimento de uma lacuna. Um buraco que tentavas tapar. O grave
é que, às vezes, por mais que tentemos remediar um problema ele será sempre
irresolúvel. E quanto mais nos esforçamos para a sua solução maior é o fosso
cavado entre o ofendido e o agressor. É como tentar alterar um destino previamente
escrito nas calendas do tempo.
Não vale a pena continuares a
recriminar-te, meu. Agora é tarde. E toma atenção: o que não pode ser
solucionado resolvido está. Bem sei que gostavas de ver os teus filhos
encaminhados na vida, mas o que podes fazer? O que podias, no que estava ao teu
alcance, fizeste. Agora é com eles. Tal como na natureza, com os passarinhos, apenas
somos responsáveis pelos filhos até conseguirem voar. A partir do momento em
que o podem fazer o seu futuro passa para as suas mãos, na sua vontade.
Compreendo-te bem, meu. Gostavas que os teus herdeiros dessem valor às coisas
como tu dás. Mas como, meu? Se não sofreram o que tu sofreste para as
conseguir? Foi tudo fácil para eles. Estás farto de saber que o sofrimento
apura a alma, eleva o espírito. Se aceitas que é assim, porque continuas a
teimar? És burro, meu? Eu entendo. Acredita que entendo. Custa ver um projecto
de vida ir por água abaixo, ao sabor da corrente. É um sofrimento que se
arrasta há muitos anos. É uma areia na engrenagem que vai causado mossa nas
relações entre ti e a tua mulher. Estou a ver a coisa, meu. As mães, com o seu obsidente
sentimento de amor pelos filhos, tentando tapar as suas falhas graves, acabam
por destruir os elos que sustêm a própria família. É natural, eu sei, meu. Mas é
um bocado estúpido, não é? Nenhum primogénito merece a separação dos pais,
sobretudo quando lhe foi dado todas as oportunidades para se reinserir na
sociedade. Todos, individualmente, através do trabalho, devemos contribuir para
a riqueza e o desenvolvimento da prole e, por inerência, do país. Não há
máximos –isso já depende da ambição de cada um e até onde quer chegar-, mas há
mínimos exigíveis para sermos cidadãos transversalmente com os mesmos direitos
e obrigações. Não pode haver “pão para malucos”. Só pode ter direito a broa na
mesa quem se esforça e contribui para a ter. O bem-estar conquista-se, não cai
do céu.
Comecei com esta retórica, meu,
desculpa, bem sei que comungas da mesma opinião. Infelizmente não tenho
soluções para o teu caso. Resta-me apelar à tua santa paciência. O tempo
resolve tudo… e se não resolver, repito, solucionado está. Desculpa, também, ter-te chamado parvo. Bem sei que não és. Um grande abraço,
meu.
1 comentário:
Muito bem escrito, reflete a realidade da nossa geração,revejo muito boa gente neste texto. Obrigada pela partilha.
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