terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

PERDIDOS




 Passavam poucos minutos das nove horas de um destes dias da semana. Entrei na Loja do Cidadão, no Largo das Olarias, subi ao primeiro-andar e caminhei em direcção ao departamento da Câmara Municipal de Coimbra. Levo na mão várias facturas de água para pagamento. Uma delas está com aviso de corte. Em redor deste posto de liquidação havia dezenas de pessoas que se acotovelam quase umas em cima das outras. Dirigi-me à máquina de senhas e constatei que já não era igual à mesma da última vez que nos tocámos. Perante o cardápio apresentado de serviços, por momentos fiquei baralhado. Em escassos segundos recobrei o sangue-frio e pensei para mim, que embora diferente, esta nova máquina não seria tão desigual da anterior e lá por ser detentora de muitas siglas não me venceria ao primeiro round. E extraí a senha correspondente ao serviço que me interessava. Entre o meu número em sorte e o que estava a ser atendido havia cerca de meia dúzia de entremeios. Encostei-me numa coluna, já que todos os bancos estavam ocupados, e dei em analisar as reacções de quem tentava relacionar-se com a máquina sem coração.
Já era senhora de idade, a primeira em que poisei o meu olhar examinador. Aproximou-se e olhou para o visor, em metáfora, da mesma forma que uma girafa olha para um palácio. Primeiro em apatia, a seguir, sem saber o que fazer, varreu com os olhos todos os lados em busca de uma ajuda amiga que a retirasse daquela aflição. Como estava atento fui em seu socorro e libertei a senha de acesso ao serviço correspondente. Chamava-se Maria –Maria, simplesmente, porque não queria publicidade-, tinha 80 anos. Quando lhe perguntei como se sentia diante de uma máquina que vai comandar as suas acções futuras, desabafou em palavras soltas e envolvidas de emoção: “sinto-me perdida, senhor! A anterior era mais simples. Esta é mais complicada. Quando me dirijo a serviços públicos tenho sempre de pedir auxílio. Deveria ser tudo simplificado tendo em conta as dificuldades das pessoas. Por que razões estão a tornar a vida tão complicada para nós mais velhos, senhor?”
Continuei atento a quem procurava tocar a máquina. Agora era uma mulher ainda nova. Vestia informalmente, com roupas baratas, e tinha um aspecto simples. Perante a maquineta, notei a mesma atrapalhação da velhinha. Como se estivesse paralisada, ficou parada diante do visor e sem saber o que fazer. Como bombeiro voluntário de ocasião, mais uma vez, saltei para o abismo da disfunção e amparei a senhora. Chama-se Susana –“não mais do que isso, por favor”, rogou-me-, tem 37 anos e está desempregada. “Perante estas novas formas de ordenar o atendimento público, sinto-me bloqueada, perdida num labirinto, entende? Estas coisas deveriam ser mais evidentes. Sinto-me mal. Experimento uma sensação de alguém que é diferente, como se fosse anormal. Diariamente, perante esta nova vaga dos computadores, sinto que, apesar de ainda ser nova, estou arredada destes tempos que teimam em nos atropelar. Sofro imenso, um incómodo crescente, como se fosse analfabeta e não soubesse ler. É triste, sabe? Sempre trabalhei em limpezas…”
Ao lado estava uma mulher de pernas cruzadas, bem torneadas e forradas com meias de rede, como se fossem armadilha para olhares masculinos, saia subida até meio da coxa, deixando adivinhar um paraíso inimaginável desconhecido, e botas de meio cano. Num rosto bem tratado onde se afugentam as rugas, uma pele sedosa que apetecia acariciar, os cabelos alourados, apanhados na nuca, emolduravam um raro quadro de beleza feminina. Não seria por mal, acreditei, mas tinha um ar superior que causava desprimor. Era como se fosse uma produção artística, sem idade previsível, de autor desconhecido, mas que teimava em impor-se aos demais. Enquanto falava com Susana, mesmo sem ser interpelada, abruptamente, metia-se na conversa. Prometi dialogar com ela a seguir. Chama-se Rosa. Tem 56 anos de idade –quem diria, pensei para mim, em solilóquio, com os meus botões e lancei um assobio silencioso. Trabalha com computadores. Para ela, estas máquinas são muito simples, mas, admite que para quem não está habituado pode ser um inferno. Concordou que tudo deveria ser naturalmente simples. Os humanos gostam de complicar tudo. Rematou em conclusão: “escreva lá que todos os serviços na Loja do Cidadão são péssimos!”. E eu, que normalmente até sou bem-mandado por qualquer um, não haveria de ser por uma beldade? Claro que escreverei, prometi. E cumpri. Cá fica.

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