Passava cerca de um quarto de
hora depois das nove, da última sexta-feira, quando transpus a porta do hall de
entrada que dá acesso à Sala dos Capelos, da Universidade de Coimbra. A azáfama
era enorme com muitas pessoas, pela fisionomia presumo que estrangeiras, a
acotovelar-se para aceder ao grande salão de cerimónias. Pelo ambiente formal,
presumia-se a recepção a uma grande celebridade. Talvez um alto dignitário da
Igreja, quiçá um grande chefe de estado. Pelo anunciado na imprensa e pelos
convites formulados, sabia-se quem era a visita célebre: Viviane Reding,
vice-presidente da Comissão Europeia, Comissária Europeia da Justiça, Direitos
Fundamentais e de Cidadania.
Atrás de uma enorme secretária,
duas moças bonitas, bem maquilhadas e vestidas de fato a rigor, faziam a triagem
de quem entrava para o recinto que foi palco das Cortes de Coimbra em 1385 e
aclamou D. João I de Portugal. Enquanto aguardava a vez, de soslaio, mirava os
fatos de bom corte, quem sabe Armani, e comparava com a minha indumentária
simples. Chegou a minha vez. “O seu nome, por favor? Inscreveu-se pela
Internet?” –interrogou-me a bela mulher sem me olhar nos olhos e puxando de uma
listagem de nomes. Riscou o meu apelido no papel e entregou-me um saco de asas,
resinado de cor branca, com uma tarja cor de laranja de um lado e, junto ao
logótipo europeu de fundo azul e doze estrelas, onde se poderia ler “Tem a ver
com a Europa; Tem a ver CONSIGO. Participe no debate. Ano Europeu dos Cidadãos
2013 www.europa.eu/citizens-2013”.
No reverso do saco, em letras gordinhas, “Diálogo com os Cidadãos – Coimbra, 22
de fevereiro de 2013”. Dentro da sacola, um caderno de apontamentos de argolas,
com as mesmas inscrições repetidas, uma esferográfica, uma pen, e um livro emitido
pela Comissão Europeia, com o título “Mais Cidadão” onde ao longo de 27 páginas
se explicava como “ser cidadão” deste velho continente e novo agrupamento de
estados geminados.
Na entrada da Sala dos Capelos
mais uma bela mulher me interpelou sem olhar duas vezes para mim e
informando-me que, como estava inscrito, o meu lugar era à frente, na plateia.
Transpus a porta do opulento e magnífico compartimento, ainda meio vazio mas
pleno de câmaras de filmar, em direcção a uma das filas primeiras e acomodei-me
junto a um amigo que encontrei por acaso. À minha frente, num pequeno
anfiteatro estavam duas cadeiras, uma vazia, certamente à espera da convidada,
e outra ocupada com uma “boneca”, que me pareceu humana e reconhecer da
televisão. Alta, corpo escultural, rosto de cera, e com olhar fixo e frio no
grande portal que, dentro de alguns minutos, seria atravessado por Viviane
Reding -rainha de Bruxelas, considerando Durão Barroso, o presidente, o rei.
Todos os bancos da plateia e
alguns cadeirões do balcão foram sendo ocupados e bateram as 10 badaladas na
velha cabra. Naquele cenário de filme holliwoodesco, a me fazer lembrar o filme
Cleópatra, a todo o momento, saídas
do nada, eu esperava ver aparecer longas trombetas douradas a debitarem som
para anunciar a iminente entrada de Elizabeth Taylor, com toda a sua imponente
beleza e majestática pose em princípios da década de 1970. A “boneca de cera”, como vigia de torre de menagem, continuava de perna cruzada, de atalaia,
e só tinha olhos para a porta grande. Bateram as dez badaladas na velha torre e
finalmente mostrou ter vida, levantando-se.
E ENTRA A GRANDE DIVA
Sem música, mas em passo solene,
à frente de um pequeno séquito, entrou a nossa futura presidente da Comissão
Europeia –se Deus Nosso Senhor lhe fizer a vontade, porque penso que este é o
desejo maior que a senhora mais aspira. Como a generosidade do Pai Nosso é
grande, nunca se sabe. O cortejo precedente da eleita de todos os olhares era
constituído pelo Magnífico Reitor, João Gabriel Silva, Vital Moreira,
constitucionalista, Mário Ruivo, deputado no Parlamento, Manuel Porto,
presidente da Assembleia Municipal, um deputado luso-luxemburguês e outro
acompanhante que não reconheci.
A “boneca de cera” deu as boas
vindas a Viviane Reding, que por escassos momentos se sentou, e os restantes
seguidores tomaram os seus lugares à sua volta. Como num fórum romano, o reitor
ocupou o cadeirão principal do imperador. Coube-lhe o primeiro discurso, curto
e com alguns atropelos à língua portuguesa, mas que ninguém notou, porque,
incluindo os jornalistas, só estavam presos na representante europeia e não
viam mais nada a não ser o supérfluo, os disparates e o que pouco importa aos
cidadãos. Como já vem sendo hábito, na tradição ritual destas festas na
Universidade, no país, o que importa mesmo é a forma, cerimoniosa de receber, o
fazer de conta, a postura, a
prestação de vassalagem a quem nos atropela e ajuda a mandar para as catacumbas
da perdição – a fazer lembrar a ocupação espanhola de 1580 a 1640- e pouco a
substância.
A GRANDE BARRACA
Com uma organização medíocre,
este encontro começou logo mal. Através de convite, através da Internet, a
representação da Comunidade Europeia em Lisboa convidava a que se formulassem
perguntas por e-mail. Seria de supor
que quem as formulou teria preferência no debate. Numa explicação muito tosca,
em que não se percebeu o que iria acontecer, os presentes começaram a surfar a onda.
Depois a “boneca de porcelana” informou que quem quisesse participar que
colocasse o braço no ar… mas não disse quem iria tomar conta destas inscrições.
E os candidatos a intervir no plenário, olhando uns para os outros, ficaram de
braço no ar em castigo e à espera que alguém, não se sabendo quem, tomasse nota
da inscrição. Sem ser declarativo, ficou a saber-se que era a jornalista que
embirrei em chamar “boneca de porcelana”. Sem ordem na intervenção, só pela
persistência de alguns, em que me incluo, foi conseguido ter voz num debate cujo
tema era, lembro, “Diálogos com o Cidadão”.
Mas a barraca ainda só agora
estava a começar. A musa encantada luxemburguesa, de casaco azul e calça
ligeira de executiva, não parava um segundo no mesmo lugar e sempre a
distribuir charme na assistência. Como debutante a dançar a valsa de Strauss,
Viviane Reding era o centro de atenções gerais. Havia um pequeno problema:
falava em inglês e não havia tradução à vista. Passaram 15, 30 minutos, e eu,
mentalmente dividia-me entre amaldiçoar o meu francês que sempre gostei ou,
como deputado no ex-parlamento soviético, levantar o braço à espera de atenção.
Acabei por me inclinar por esta opção. Durante um quarto de hora, tal como
outros, mantive o braço no ar. Foi dada a palavra a um cidadão no fundo da sala
e ele interrogou da razão de não haver tradução. Pergunta a “boneca de
porcelana”: “não tem tradutor automático? Mas olhe que há tradução!”. E
viram-se umas “bonecas de corda” a correr para a entrada, a toda a pressa, para
irem recolher os aparelhos e distribui-los aos espectadores dentro da sala. À frente
eu continuava de braço no ar, à espera. Finalmente, passados 40 minutos, tive
direito a um objecto reprodutivo, entregue em mão sem ser ligado. Claro que
para as “bonecas” mirabolantes, certamente, no seu pensar, este público
presente eram cidadãos europeus, com toda a sua carga de enorme sabedoria e responsabilidade.
Para além de deverem falar três línguas -como deu a perceber a comissária-
deveriam tratar por tu aqueles pequenos “aparelhómetros”. Se assim não era, só
podiam ser habitantes de outro qualquer continente, talvez sul-americano, sem
ofensa para os ditos. Azar danado para mim: para além de não falar bem uma
única língua, o meu retransmissor não ligava.
Mas uma infelicidade nunca vem só,
que o diga o professor Norberto Canha que legitimamente quis intervir lendo uma
carta à flor do Luxemburgo. Não se
sabe bem porquê, especulo que a “boneca de porcelana”, ali transformada em polícia
de trânsito, às tantas teria pensado que o antigo director dos HUC, Hospitais
da Universidade, queria fazer uma declaração de amor a Viviane e não foi de
modas: cortou a conversa. Ali não se poderiam ler mensagens escritas. E o meu
amigo Canha, que, apesar de ser doutor, normalmente é muito refilão, amuou,
aceitou e não contestou. O problema é que, neste ano da inclusão e em que o
cidadão europeu parece merecer respeito, logo a seguir, salvo erro do
Luxemburgo, por videoconferência, uma deputada local, sentada ao lado do homem
mais rico da siderurgia, leu uma carta, à vontade, e ocupou o tempo que bem
quis.
Isto tudo para dizer que
estivemos perante uma grande encenação. A senhora Viviane Reding, por mérito
próprio, tem lugar na galeria dos maiores políticos mitómanos que não deixam
história neste Parlamento e Comissão Europeia. Às perguntas formuladas, em que
me incluo, nunca respondeu objectivamente nem coisa que se entendesse como
segundo rosto da Comissão. Ao perguntar-lhe, enquanto Comissária Europeia da
Justiça, dos Direitos Fundamentais e da Cidadania, como entendia que um
empresário que trabalhou toda a sua vida, criando riqueza, sacrificando a
família, nesta altura em vias de cair na indigência, não tenha direito a
subsídio de desemprego? Respondeu zero. Ao meu convite para, na minha
companhia, visitar alguns comerciantes que estão com um pé na pobreza na Baixa
de Coimbra esqueceu. À questão de uma jovem estudante, sobre o corte das bolsas,
e que deveria ter sido formulada por Ricardo Salgado, o presidente da
Associação Académica de Coimbra, a vice-presidente preferiu embarcar na demagogia
dizendo que “os jovens têm uma herança pesada!”
E chegou-se ao final de duas
horas para esquecer, onde, em paradigma, ficou bem patente o servilismo dos
portugueses perante o governo europeu. Na parte final, calhou a partitura
musical a Manuel Rocha, presidente do Conservatório de Coimbra e candidato a
líder da Assembleia Municipal pela CDU, à frente dos seus alunos a tocar e a
cantar o Hino da Alegria. Aposto que
alguns presentes, quando o viram, ficaram lívidos e a interrogar-se: “será que
ele vai executar a Grândola Vila Morena?”
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