sábado, 2 de fevereiro de 2013

UM SÁBADO DE MANHÃ NA BAIXA



 Está um dia lindo para viver. Em metáfora, o Sol em rosto de mulher bela, alheia às tristezas passadas, parece sorrir de contentamento nas ruas estreitas e não se escusa a beijar as pedras da calçada. Ornamentado por imaginários cabelos louros, brilhantes, displicentes e libertinos, como sublimação da vida, inverso a castigo, parece lança-los à brisa suave e sobre quem passa com graça e sem ela.
No canto do Largo da Freiria e com frente para a Rua Eduardo Coelho, em contraste com o astro-rei, como sentinela morta de vida, a Sapataria Reis, que já foi baluarte de um comércio pujante e auspicioso, está agora transformada em sarcófago de cartazes publicitários e de riscos e rabiscos dos vadios que se outorgam livres mas condicionam a liberdade odiando a construção. O seu trabalho mental e físico é desconstruir a obra. Se pudessem impor a sua vontade controlariam a natureza, e tudo na superfície da Terra seria plano e horizontal. Não haveria montes e vales, desfiladeiros e fundos de nada, em que sem o ser, imaterial, significam o infinito.
Estranhamente, vá-se lá saber por quê, a velha Sapataria Reis, na expressão da sua placa publicitária retro de bonomia, indica sorrir de tudo o que a rodeia. Parece uma múmia a quem retiraram tudo nas suas entranhas mas não puderam roubar o sorriso. Mas de que rirá esta velha desgraçada que, num falso luto sem sentimento, continua a vestir de preto as suas montras? Para desafiar ainda mais quem passa, numa delas conserva uma imitação de rosa vermelha brava. Como se entre uma rosa vermelha, sangue e rápidos de rios que correm nos interstícios da vida, tivesse alguma coisa a ver com o negro da morte!?! Só pode ser mesmo provocação! Será que a extinta, com ar de galhofa dissimulada, sorri do rapaz e da rapariga novos, da senhora e do homem velhinhos que passam na calçada que já foi de sapateiros? E que, perante a lamúria repetida do ceguinho Eduardo, “tenham dó e caridade para auxiliar o ceguinho, senhor!, são tomados pela dor e, no seu passo compassado refreando o movimento, voltam atrás e colocam uma moeda no pratinho de plástico? É certo que a onda de generosidade monetária já não é o que era, mas, não importa, continua a dar e o Eduardo soube adaptar-se aos novos ventos. Até há uns anos atrás, quando a comparticipação era avultada, também havia muito mais concorrência. Agora, em resquício de uma época memorial, já só resta um cigano que se faz passar por aleijadinho. Nesse tempo de fartura complementava a ladainha com “Que Deus lhe pague, Senhor!” –sem o saber, certamente, fazendo analogia com a novela teatral de Juraci Camargo. Agora, que as moedas encolheram e a vontade se contraiu, os dadores levam metade da mensagem, e estão com sorte. Porque, eventualmente, se for obrigado a passar “factura simplificada” podem todos ficar a saber que apanham um obrigado, seco e sem arranjos introspectivos analíticos, e nada mais. “Isso é que era bom! Se querem receber muito a pouco dar, vão à Cova da Iria” –pensará para si mesmo o homem que almejava ver para crer.
Esta velha sapataria, que já calçou todas as classes durante quase um século e se foi, é demais! Se calhar até goza na forma sub-reptícia como o invisual, de vislumbrar o brilho do Sol mas vidente no comportamento humano, de quarto a quarto de hora, limpa o recipiente de moedas, algumas de euro e muito mais de vinte cêntimos. Provavelmente, a velha Reis, pensará que tudo assenta no medo que domina os humanos. O receio de ficar sem vista, sem luz, sem dinheiro, sem existência, porque o ser sem ter não é viver, é arrastar na lama da miséria. E ali, naquela esquina da Rua antiga de Sapateiros, o senhor Eduardo, como cilindro de combustão onde tudo e todos, ricos e remediados e até pobres, desaguam a fobia do inferno de nada vir a ter, simboliza o conflito emergente entre uma vida esperançada de bem-estar terreno e uma morte física perdida na escuridão dos dias. Se assim não fosse, como entender que um músico de rua, que prestando um serviço social, animando o meio envolvente com a sua melodia, no mesmo tempo do ceguinho, leve apenas 1,70 euros? Compreende-se porque este, o músico, é o modelo facilitista de se sobreviver a pouco fazer, enquanto o Eduardo, mestre da lengalenga angustiante, é o paradigma do mártir, o Cristo sentado na esquina que, na imagem e na voz, sofre por todos nós. É uma catedral apostólica individual que pede para todos e por todos e com muito menos recursos. A Igreja Universal do Reino de Deus, que hoje, durante a manhã, na Baixa, disponibilizou um exército de missionários a pregar a esperança, a fé e o jornal “Eu Era Assim”, deveria olhar mais para o Eduardo que, para espalhar a palavra “do dê a mim e fique aliviado e com um pé na esperança”, não precisa de adquirir nenhum edifício, nem vender a sua mensagem na rádio, na televisão e no jornal.
Um dia destes a velha calçadeira que já foi, quando os tribunais de homens injustos e sem respeito pelo passado derem por concluído o processo, a Sapataria Reis, com aquele sorriso sarcástico, que só alguns vêem e poucos sentem, vai desaparecer e vai dar lugar a uma fina loja de chocolates e sem tempo, para dar ao tempo mais tempo, para criticar quem passa na velha artéria de um passado comercial glorioso e hoje soletrado na cantilena do Eduardo: “tenham dó e caridade para auxiliar o ceguinho, senhor!”


TEXTOS RELACIONADOS

"Baixa: a crise também afecta os pedintes"
"Baixa: não haverá Páscoa para o Reis"
"Brincar com a mendicidade em jeito de alertar"
"Não dar para o peditório"
"Uma volta ao quarteirão"
"O mendigo turco"
"A incompreensão da arte ou..."
"A carraça"
"Uma mulher preciosa"
"Vagabundo de nós"
"Lugares sem vida"
"Coimbra cidade cinzenta"
"Hélder, o pária mal-amado"

Sem comentários: