Está um dia lindo para viver. Em
metáfora, o Sol em rosto de mulher bela, alheia às tristezas passadas, parece
sorrir de contentamento nas ruas estreitas e não se escusa a beijar as pedras
da calçada. Ornamentado por imaginários cabelos louros, brilhantes, displicentes
e libertinos, como sublimação da vida, inverso a castigo, parece lança-los à
brisa suave e sobre quem passa com graça e sem ela.
No canto do Largo da Freiria e
com frente para a Rua Eduardo Coelho, em contraste com o astro-rei, como
sentinela morta de vida, a Sapataria Reis, que já foi baluarte de um comércio
pujante e auspicioso, está agora transformada em sarcófago de cartazes
publicitários e de riscos e rabiscos dos vadios que se outorgam livres mas
condicionam a liberdade odiando a construção. O seu trabalho mental e físico é
desconstruir a obra. Se pudessem impor a sua vontade controlariam a natureza, e
tudo na superfície da Terra seria plano e horizontal. Não haveria montes e
vales, desfiladeiros e fundos de nada, em que sem o ser, imaterial, significam
o infinito.
Estranhamente, vá-se lá saber por
quê, a velha Sapataria Reis, na expressão da sua placa publicitária retro de
bonomia, indica sorrir de tudo o que a rodeia. Parece uma múmia a quem retiraram
tudo nas suas entranhas mas não puderam roubar o sorriso. Mas de que rirá esta
velha desgraçada que, num falso luto sem sentimento, continua a vestir de preto
as suas montras? Para desafiar ainda mais quem passa, numa delas conserva uma
imitação de rosa vermelha brava. Como se entre uma rosa vermelha, sangue e
rápidos de rios que correm nos interstícios da vida, tivesse alguma coisa a ver
com o negro da morte!?! Só pode ser mesmo provocação! Será que a extinta, com
ar de galhofa dissimulada, sorri do rapaz e da rapariga novos, da senhora e do
homem velhinhos que passam na calçada que já foi de sapateiros? E que, perante
a lamúria repetida do ceguinho Eduardo, “tenham dó e caridade para auxiliar o
ceguinho, senhor!, são tomados pela dor e, no seu passo compassado refreando o
movimento, voltam atrás e colocam uma moeda no pratinho de plástico? É certo
que a onda de generosidade monetária já não é o que era, mas, não importa, continua
a dar e o Eduardo soube adaptar-se aos novos ventos. Até há uns anos atrás,
quando a comparticipação era avultada, também havia muito mais concorrência.
Agora, em resquício de uma época memorial, já só resta um cigano que se faz
passar por aleijadinho. Nesse tempo de fartura complementava a ladainha com “Que
Deus lhe pague, Senhor!” –sem o saber, certamente, fazendo analogia com a
novela teatral de Juraci Camargo. Agora, que as moedas encolheram e a vontade
se contraiu, os dadores levam metade da mensagem, e estão com sorte. Porque,
eventualmente, se for obrigado a passar “factura simplificada” podem todos
ficar a saber que apanham um obrigado, seco e sem arranjos introspectivos
analíticos, e nada mais. “Isso é que era bom! Se querem receber muito a pouco
dar, vão à Cova da Iria” –pensará para si mesmo o homem que almejava ver para
crer.
Esta velha sapataria, que já calçou
todas as classes durante quase um século e se foi, é demais! Se calhar até goza
na forma sub-reptícia como o invisual, de vislumbrar o brilho do Sol mas
vidente no comportamento humano, de quarto a quarto de hora, limpa o recipiente
de moedas, algumas de euro e muito mais de vinte cêntimos. Provavelmente, a velha
Reis, pensará que tudo assenta no medo que domina os humanos. O receio de ficar
sem vista, sem luz, sem dinheiro, sem existência, porque o ser sem ter não é
viver, é arrastar na lama da miséria. E ali, naquela esquina da Rua antiga de
Sapateiros, o senhor Eduardo, como cilindro de combustão onde tudo e todos,
ricos e remediados e até pobres, desaguam a fobia do inferno de nada vir a ter,
simboliza o conflito emergente entre uma vida esperançada de bem-estar terreno
e uma morte física perdida na escuridão dos dias. Se assim não fosse, como
entender que um músico de rua, que prestando um serviço social, animando o meio
envolvente com a sua melodia, no mesmo tempo do ceguinho, leve apenas 1,70
euros? Compreende-se porque este, o músico, é o modelo facilitista de se
sobreviver a pouco fazer, enquanto o Eduardo, mestre da lengalenga angustiante,
é o paradigma do mártir, o Cristo sentado na esquina que, na imagem e na voz,
sofre por todos nós. É uma catedral apostólica individual que pede para todos e
por todos e com muito menos recursos. A Igreja Universal do Reino de Deus, que
hoje, durante a manhã, na Baixa, disponibilizou um exército de missionários a
pregar a esperança, a fé e o jornal “Eu Era Assim”, deveria olhar mais para o
Eduardo que, para espalhar a palavra “do dê a mim e fique aliviado e com um pé na
esperança”, não precisa de adquirir nenhum edifício, nem vender a sua mensagem
na rádio, na televisão e no jornal.
Um dia destes a velha calçadeira
que já foi, quando os tribunais de homens injustos e sem respeito pelo passado
derem por concluído o processo, a Sapataria Reis, com aquele sorriso sarcástico,
que só alguns vêem e poucos sentem, vai desaparecer e vai dar lugar a uma fina
loja de chocolates e sem tempo, para dar ao tempo mais tempo, para criticar quem
passa na velha artéria de um passado comercial glorioso e hoje soletrado na cantilena
do Eduardo: “tenham dó e caridade para auxiliar o ceguinho, senhor!”
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