(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
CONTRIBUTOS (2)
Por José Xavier Nunes
Já houve tempos na minha
vida em que ia ao mercado pedir carapauzinhos para o gato. Outros em que ia à
praça pedir para mim e uns amigos. Amigos daqueles que só temos na nossa
infância e os caminhos da vida sempre nos desviam deles. Amigos que cozem
caracóis numa lata ou assam carapaus numa fogueira alimentada por restos de
móveis inúteis abandonados num canto qualquer das mesmas encruzilhadas da
vida... sem requintes, exigências e etiquetas. São espontaneidades de almas
nuas e crentes nas virtudes de uma flor, da lua, do sol, das estrelas e… dos
caracóis. Tempos de crenças e inocências, em que as peixeiradas não têm outro
significado além do que se passa à volta da fogueira e, em casos mais gravosos,
se resolvem com uma medição de forças donde podem resultar um olho negro, dois
arranhões e um chorrilho de palavrões... sem que disso sobre um resto de
ressentimento. Ou, pelo contrário, sirva como reforço de um sentimento que
direcciona numa amizade reforçada, e um ralhete da mãe, da avó ou do pai, por causa
dos calções sujos ou os joelhos rasgados. Como nas regras da vida tudo
cresce, também nós crescemos. E com esse crescimento o mundo alarga-se, os
sentimentos expandem-se, os caracóis pagam-se a uns tantos euros por pires, as
flores causam alergias, a lua traz a noite, o sol requer óculos escuros e
protecções dérmicas, os amigos diluem-se na multidão e as peixeiradas trazem
consequências. Isto foi uma breve e pouco clara descrição do que poderiam
ter sido alguns episódios da minha infância, pré-adolescência... ou as
aventuras de um irresponsável. Podem chamar-lhe o que mais lhes
agradar. Agora que caminho para a velhice, mercados, praças e peixeiradas,
nesta época de crise, assumem um aspecto aterrador... conforme veiculados por
noticiários credíveis, pessoas importantes, números indesmentíveis ou mero
divertimento politiqueiro. Acreditando em tudo o que me é dito através de todos
os canais por onde só posso saber o que sei, estou metido em maus lençóis e
tenho de apertar o cinto. Creio que um espartilho é mais eficiente para
dissimular ventres inchados, mas não vou fazer uma peixeirada por causa disso. No
que posso ter mais esperança é que não nos sugiram apertar o cinto à volta do
pescoço. Com a velhice o cérebro humano vai acumulando dúvidas -pelos
vistos, nestes tempos mais dívidas do que dúvidas- e aumenta o défice de
clareza mental. Como não sou excepção, estou atulhado delas e como sou crente, por
fraqueza, vou engolindo tantos sapos como micróbios... com a convicção própria
de uma birra de que todos os mercados, praças e peixeiradas hão-de ter nomes e
pessoas com rosto. A não ser que se dê o caso de que tal como eu com a força do
tempo ter desvanecido nas minhas memórias os nomes das peixeiras, dos amigos
das peixeiradas e o fogo onde assava os carapaus e cozia os caracóis. O que
não é lógico, sendo esta crise recente... nem sequer os retratos ainda tiveram
tempo para amarelecer. Portanto, há nomes, há caras e há sítios onde foi
forjada -todos ainda em tempo útil de identificação. Então não há que comparar
os meus "desvarios" da pré-racionalidade, com as névoas da presente
realidade. Falar mais em nomes, mostrar mais rostos e sinalizar sítios, pode
ajudar mais a resolver a crise do que alimentar peixeiradas. Au revoir...
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