sábado, 2 de fevereiro de 2013

CONTRIBUTO (2)

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)


CONTRIBUTOS (2)




Por José Xavier Nunes

 Já houve tempos na minha vida em que ia ao mercado pedir carapauzinhos para o gato. Outros em que ia à praça pedir para mim e uns amigos. Amigos daqueles que só temos na nossa infância e os caminhos da vida sempre nos desviam deles. Amigos que cozem caracóis numa lata ou assam carapaus numa fogueira alimentada por restos de móveis inúteis abandonados num canto qualquer das mesmas encruzilhadas da vida... sem requintes, exigências e etiquetas. São espontaneidades de almas nuas e crentes nas virtudes de uma flor, da lua, do sol, das estrelas e… dos caracóis. Tempos de crenças e inocências, em que as peixeiradas não têm outro significado além do que se passa à volta da fogueira e, em casos mais gravosos, se resolvem com uma medição de forças donde podem resultar um olho negro, dois arranhões e um chorrilho de palavrões... sem que disso sobre um resto de ressentimento. Ou, pelo contrário, sirva como reforço de um sentimento que direcciona numa amizade reforçada, e um ralhete da mãe, da avó ou do pai, por causa dos calções sujos ou os joelhos rasgados. Como nas regras da vida tudo cresce, também nós crescemos. E com esse crescimento o mundo alarga-se, os sentimentos expandem-se, os caracóis pagam-se a uns tantos euros por pires, as flores causam alergias, a lua traz a noite, o sol requer óculos escuros e protecções dérmicas, os amigos diluem-se na multidão e as peixeiradas trazem consequências. Isto foi uma breve e pouco clara descrição do que poderiam ter sido alguns episódios da minha infância, pré-adolescência... ou as aventuras de um irresponsável. Podem chamar-lhe o que mais lhes agradar. Agora que caminho para a velhice, mercados, praças e peixeiradas, nesta época de crise, assumem um aspecto aterrador... conforme veiculados por noticiários credíveis, pessoas importantes, números indesmentíveis ou mero divertimento politiqueiro. Acreditando em tudo o que me é dito através de todos os canais por onde só posso saber o que sei, estou metido em maus lençóis e tenho de apertar o cinto. Creio que um espartilho é mais eficiente para dissimular ventres inchados, mas não vou fazer uma peixeirada por causa disso. No que posso ter mais esperança é que não nos sugiram apertar o cinto à volta do pescoço. Com a velhice o cérebro humano vai acumulando dúvidas -pelos vistos, nestes tempos mais dívidas do que dúvidas- e aumenta o défice de clareza mental. Como não sou excepção, estou atulhado delas e como sou crente, por fraqueza, vou engolindo tantos sapos como micróbios... com a convicção própria de uma birra de que todos os mercados, praças e peixeiradas hão-de ter nomes e pessoas com rosto. A não ser que se dê o caso de que tal como eu com a força do tempo ter desvanecido nas minhas memórias os nomes das peixeiras, dos amigos das peixeiradas e o fogo onde assava os carapaus e cozia os caracóis. O que não é lógico, sendo esta crise recente... nem sequer os retratos ainda tiveram tempo para amarelecer. Portanto, há nomes, há caras e há sítios onde foi forjada -todos ainda em tempo útil de identificação. Então não há que comparar os meus "desvarios" da pré-racionalidade, com as névoas da presente realidade. Falar mais em nomes, mostrar mais rostos e sinalizar sítios, pode ajudar mais a resolver a crise do que alimentar peixeiradas. Au revoir...


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