quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

VAMOS AO CIRCO? (3)



E O QUE PENSA QUEM ESTÁ DENTRO?

 O homem que está à minha frente transporta no semblante a mesma solidão que apreciei nos restantes trabalhadores. Pelo brilho dos seus olhos, é notório que, apesar dos imensos escolhos do caminho, sabe para onde quer ir. É senhor de uma impressionante humildade. Mais que certo ser muito tímido, mas que, por imperativos do destino, teve de contornar a sua inibição. Dá pelo nome de Joaquim Cardinali, tem 47 anos, e nasceu dentro do circo, mais propriamente no Porto. A sua vida está em invisíveis gotas de suor espalhadas em cada peça que amanha todo o cenário. A sua alma é a vida dos outros; as palmas do público, a existência de cinco famílias compostas por 40 pessoas que combinam esta empresa ambulante sem apoios de espécie alguma, do Estado ou de outra qualquer e que, faça chuva ou sol, precisam de viver. O seu espírito está nas suas memórias vivas que o empurram para a frente, quem sabe, sobre o olhar atento do seu avô Joseph Cardinali e que há mais de sessenta anos fundou o Circo com o seu nome. A sua alma está no amor familiar, na esposa, nos seus três filhos, o Igor e a Íris, ambos trapezistas, e o Enzo que é malabarista. Respectivamente com as idades de 23, 17 e 15 anos. “É uma vida que nos entra no sangue”, enfatiza Joaquim. “Temos de continuar a rolar. Antigamente o interior era o nosso refúgio, hoje está desertificado e é muito complicado instalarmo-nos. A maioria das câmaras municipais diz que não tem lugar para nós, mesmo no litoral. Por exemplo, a Figueira da Foz é uma delas; no Algarve são quase todas a responder da mesma maneira. Aqui, em Portugal, são só obstáculos. Olham para nós, não como artistas que carregam a cultura em todo o território e além-fronteiras, mas como “pobres desgraçadinhos”. Muitas autarquias exigem 15 e 20 dias para autorização prévia de licenciamento. Chegamos a estar vários dias à espera que decorra o prazo para poder iniciar. Nunca conseguimos falar com um vereador, muito menos com o presidente de uma edilidade.
No ano passado, por termos dificuldades de laborar, rumámos a Espanha. Foram 8 meses por terras de “nuestros hermanos”. Lá, chegamos a qualquer “Ayuntamento”, similar das nossas câmaras municipais, para pedir licença e imediatamente somos enviados para falar com o vereador. Fala-se com o alcaide na hora –estou a lembrar, por exemplo, o de Gijón. Não há lá salamaleques. Olham para nós com respeito, como parceiros construtores da cultura popular. Em Portugal, para além de nos tratarem com ostracismo, não nos consideram parte do movimento cultural. Como sabe, no ano passado, decorreu em Guimarães a “Capital Europeia da Cultura”. Viu lá algum circo? Pedimos para nos instalar lá e a nossa pretensão foi negada.
É muito difícil conseguir trabalhar nestas condições. Estamos sujeitos a tudo, ao tempo, ao terreno, aos elevados custos em que se incluem as licenças camarárias. Veja bem, estamos aqui em Coimbra. Por uma semana, pagámos 500 euros, e ainda tivemos de oferecer 500 bilhetes. Há dois anos foram 300 euros. Agora junte a luz, a água e a publicidade. O que resta? Que, diga-se em abono da verdade, este terreno onde estamos é muito bom. Antigamente era diferente, para pior. Nunca pedi nada ao Estado. Nunca roguei para a minha gente subsídio de desemprego. Os meus filhos nunca receberam abono de família. O nosso carácter não é de andar de mão estendida. Só peço ao público: venham ao circo. Se vierem está tudo bem!”

E O QUE PENSA A ÍRIS, RAINHA DE MUITOS OLHARES?

 Íris tem 17 anos e é trapezista. “O circo é a minha segunda alma. Não conseguiria sobreviver sem o espectáculo. Tenho o “bichinho”, entende? Não posso viver sem os aplausos do público”. Tem o 10.º ano. Até ao 6.º andou de escola em escola e de terra em terra. A partir daí, tal como os seus irmãos, foi através da escola móvel, que agora se chama EDI, Ensino à Distância para a Itinerância. “Não preciso de estudar mais. Não tenho outro sonho para além deste. O circo é tudo o que preciso… é o ar que respiro. É uma sensação que me transcende. É cultura, é paixão, é a minha vida. Sou muito feliz. Faço uma vida igual a qualquer jovem da minha idade. Ainda esta noite passada, depois do trabalho, fomos para a discoteca. Não namoro, mas, quando calhar, vou seguir o mesmo desta minha grande família. Se me apaixonar por um rapaz do circo será mais fácil, mas se, por acaso, for outro qualquer, tenho a certeza, tal como os meus congéneres, ele vai largar tudo e vem para o circo pelo meu amor.”

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