E O QUE PENSA QUEM ESTÁ DENTRO?
O homem que está à minha frente
transporta no semblante a mesma solidão que apreciei nos restantes
trabalhadores. Pelo brilho dos seus olhos, é notório que, apesar dos imensos
escolhos do caminho, sabe para onde quer ir. É senhor de uma impressionante
humildade. Mais que certo ser muito tímido, mas que, por imperativos do
destino, teve de contornar a sua inibição. Dá pelo nome de Joaquim Cardinali,
tem 47 anos, e nasceu dentro do circo, mais propriamente no Porto. A sua vida
está em invisíveis gotas de suor espalhadas em cada peça que amanha todo o
cenário. A sua alma é a vida dos outros; as palmas do público, a existência de
cinco famílias compostas por 40 pessoas que combinam esta empresa ambulante sem
apoios de espécie alguma, do Estado ou de outra qualquer e que, faça chuva ou
sol, precisam de viver. O seu espírito está nas suas memórias vivas que o
empurram para a frente, quem sabe, sobre o olhar atento do seu avô Joseph
Cardinali e que há mais de sessenta anos fundou o Circo com o seu nome. A sua
alma está no amor familiar, na esposa, nos seus três filhos, o Igor e a Íris,
ambos trapezistas, e o Enzo que é malabarista. Respectivamente com as idades de
23, 17 e 15 anos. “É uma vida que nos entra no sangue”, enfatiza Joaquim. “Temos
de continuar a rolar. Antigamente o interior era o nosso refúgio, hoje está
desertificado e é muito complicado instalarmo-nos. A maioria das câmaras
municipais diz que não tem lugar para nós, mesmo no litoral. Por exemplo, a
Figueira da Foz é uma delas; no Algarve são quase todas a responder da mesma
maneira. Aqui, em Portugal, são só obstáculos. Olham para nós, não como
artistas que carregam a cultura em todo o território e além-fronteiras, mas
como “pobres desgraçadinhos”. Muitas autarquias exigem 15 e 20 dias para
autorização prévia de licenciamento. Chegamos a estar vários dias à espera que
decorra o prazo para poder iniciar. Nunca conseguimos falar com um vereador,
muito menos com o presidente de uma edilidade.
No ano passado, por termos
dificuldades de laborar, rumámos a Espanha. Foram 8 meses por terras de
“nuestros hermanos”. Lá, chegamos a qualquer “Ayuntamento”, similar das nossas
câmaras municipais, para pedir licença e imediatamente somos enviados para
falar com o vereador. Fala-se com o alcaide na hora –estou a lembrar, por
exemplo, o de Gijón. Não há lá salamaleques. Olham para nós com respeito, como
parceiros construtores da cultura popular. Em Portugal, para além de nos
tratarem com ostracismo, não nos consideram parte do movimento cultural. Como
sabe, no ano passado, decorreu em Guimarães a “Capital Europeia da Cultura”.
Viu lá algum circo? Pedimos para nos instalar lá e a nossa pretensão foi
negada.
É muito difícil conseguir
trabalhar nestas condições. Estamos sujeitos a tudo, ao tempo, ao terreno, aos
elevados custos em que se incluem as licenças camarárias. Veja bem, estamos
aqui em Coimbra. Por uma semana, pagámos 500 euros, e ainda tivemos de oferecer
500 bilhetes. Há dois anos foram 300 euros. Agora junte a luz, a água e a
publicidade. O que resta? Que, diga-se em abono da verdade, este terreno onde
estamos é muito bom. Antigamente era diferente, para pior. Nunca pedi nada ao
Estado. Nunca roguei para a minha gente subsídio de desemprego. Os meus filhos
nunca receberam abono de família. O nosso carácter não é de andar de mão
estendida. Só peço ao público: venham ao circo. Se vierem está tudo bem!”
E O QUE PENSA A ÍRIS, RAINHA DE
MUITOS OLHARES?
Íris tem 17 anos e é trapezista.
“O circo é a minha segunda alma. Não conseguiria sobreviver sem o espectáculo.
Tenho o “bichinho”, entende? Não posso viver sem os aplausos do público”. Tem o
10.º ano. Até ao 6.º andou de escola em escola e de terra em terra. A partir daí,
tal como os seus irmãos, foi através da escola móvel, que agora se chama EDI,
Ensino à Distância para a Itinerância. “Não preciso de estudar mais. Não tenho
outro sonho para além deste. O circo é tudo o que preciso… é o ar que respiro.
É uma sensação que me transcende. É cultura, é paixão, é a minha vida. Sou
muito feliz. Faço uma vida igual a qualquer jovem da minha idade. Ainda esta
noite passada, depois do trabalho, fomos para a discoteca. Não namoro, mas,
quando calhar, vou seguir o mesmo desta minha grande família. Se me apaixonar
por um rapaz do circo será mais fácil, mas se, por acaso, for outro qualquer,
tenho a certeza, tal como os meus congéneres, ele vai largar tudo e vem para o
circo pelo meu amor.”
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