(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Quem faz o favor de me ler sabe que, habitualmente, só escrevo disparates. Mas como a natureza é boa e equitativa, todos os asnos têm seu momento de resplandecência. Foi o que me aconteceu em Janeiro quando o João Valadão, certamente por não ter ninguém mais qualificado, me entrevistou para um trabalho académico. Se quiser fazer o favor de saber o que disse ao João, continue a ler:
GRANDE ENTREVISTA, POR JOÃO VALADÃO
Licenciatura em Jornalismo -
Géneros Jornalísticos
Aluno: João Pedro Trigueiros
Valadão
“As pessoas não estão preparadas
para defender o bem comum”
Luís Quintans, proprietário de um
antiquário na Baixa de Coimbra, tem-se assumido como um dos cidadãos mais
proactivos na defesa desta zona da cidade. É no seu blogue, ‘Questões
Nacionais’, que fomenta a sua crítica ao poder autárquico e à inépcia dos
cidadãos. Para o comerciante e ‘blogger’, uma cidadania ativa é fundamental
para o desenvolvimento sustentável da cidade e a elevação da cidade a
património mundial depende da formação dos seus munícipes. Por outro lado, considera
que uma maior abertura e cooperação por parte do executivo municipal são urgentes
e indispensáveis.
O blogue tem sido fundamental na
sua atividade cívica. Quando surgiu?
O blogue surgiu em 2007, da
necessidade de eu gostar de escrever. No fundo, foi o preenchimento de uma
lacuna. Sempre escrevi, normalmente para os jornais, mas nós para os jornais
estávamos sempre condicionados porque umas vezes publicavam e outras vezes não.
Quem escreve sabe que, quando tem alguma coisa a dizer, quer ver as coisas
publicadas. Foi sempre uma luta que tive com os dois jornais, com o Diário As
Beiras e o Diário de Coimbra, porque às vezes não publicavam. Às vezes
considerava que era mal tratado, porque para além de escrever eu gosto de
intervir. Ou seja, normalmente há dois tipos de escritores (mas eu não sou
escritor, digo isto apenas no sentido que escrevo): há aquele que escreve e
utiliza a sua escrita para intervir no social, para modificar as coisas, é
nessa que me insiro e há outro, dos amores platónicos, que tem uma intervenção
através do pensamento, não direta. Sou o primeiro caso, gosto de escrever e
intervir socialmente. É um vício que eu tenho.
Tem mantido uma regularidade
desde então?
Escrevo todos os dias.
Continua a colaborar com jornais?
Com o Diário de Coimbra e com o
Diário As Beiras praticamente cortei, porque acho que me senti mal tratado.
Estar sujeito à arbitrariedade deles, umas vezes publicarem e outras não…
Entretanto comecei a escrever com outros, com o Jornal da Mealhada durante uns
anos e, atualmente, com o Jornal O Despertar. É o único em que colaboro, no
sentido de escrever. É o semanário mais antigo de Coimbra, tem 95 anos. Tenho
uma página semanal sobre a Baixa, tenho a liberdade para escrever sobre o que
quiser, no que incidir sobre esta zona. É o que o blogue procura incidir
também, que é a sua área geográfica, se bem que o seu nome Questões Nacionais
possa dar a parecer um âmbito muito mais alargado. Procura incidir na
minudência, na pequena coisinha, na senhora que caiu e partiu uma perna ou se há
um buraco em que a câmara não intervém. Escrevi, há pouco, sobre um candeeiro
que tinha os vidros soltos e em que era muito fácil por lá uma escada, retirar
os vidros e estava solucionado. Mas os funcionários da câmara colocaram lá umas
fitas à volta, quando aquilo era uma coisa fácil de resolver. No fundo, escrevo
sobre a inépcia dos outros, se bem que as minhas também são enormes.
Acha que uma cidadania ativa
contribui para um desenvolvimento sustentável?
Eu escrevo sobre isso todos os
dias e é uma luta completamente perdida. Vou-lhe dar outra vez o mesmo exemplo:
o candeeiro, junto às escadas de Santiago, foi abalado por um temporal. Eu
escrevi no meu blogue o que se tinha passado, os estragos mais relevantes que
notei. Os serviços da câmara foram lá e puseram fitas à volta do candeeiro, a
abarcar grande área das escadas e aquilo lá ficou. Note-se que estamos a falar
de uma área geográfica que é candidata a património mundial da UNESCO, não
estamos a falar da nossa aldeia, em que ninguém lá vai! Estamos a falar de uma
zona fulcral que é a Praça do Comércio, zona monumental, e a Baixa tem pelo
menos seis instituições que se debruçam sobre os seus problemas.
Na altura fui ao Gabinete do
Centro Histórico, no Arco da Almedina e as pessoas olharam-me com uma cara de
“o que é que este parvo vem para aqui fazer?”. Mas como eu tenho alguma
convicção, passei isso à frente e consegui que me ligassem a outro gabinete.
Tem algum feedback junto da
câmara?
Não tenho grande feedback. Eu
escrevo muito sobre o que se passa aqui na Baixa e envio quase sempre tudo para
o correio electrónico da câmara. Aqueles [correios eletrónicos] que tenho
acesso, mando sempre. Normalmente, poucas vezes me dão resposta. Noto que eles
me conhecem, isso noto. Vou muitas vezes à câmara, sempre que tenho
possibilidade de intervir. Intervenho algumas vezes na assembleia municipal,
quando acho que devo ir. Quando estes meios não funcionam vou lá pessoalmente.
Não sei como a câmara reconhece a minha intervenção, como uma pessoa que se
interessa ou como “aquele que vem chatear”.
Sente desconforto?
Não sinto desconforto, porque
rio-me de mim próprio. Rio-me, quase, destas coisas. Considero que é uma
parvoíce como outra qualquer, podia ocupar-me de outra coisa, ocupo-me disto.
Considera que há uma falta de
abertura por parte da Câmara Municipal de Coimbra para os cidadãos?
Completamente. Não somos
maltratados, tenho de ser honesto, nunca fui incomodado por ser assim. Tenho
escrito muitas coisas a denunciar situações limite, que quase poderiam ser,
hipoteticamente, passíveis de uma ação de difamação. Andei em direito e sei
alguns dos princípios, tenho algum cuidado com o que escrevo. Quando escrevo a
denunciar situações são sempre passiveis de difamação da outra parte. Até agora
nunca tive isso por parte da câmara. Nunca senti nenhuma espécie de perseguição
pela outra parte, pelo contrário. Não senti amizade da parte deles, mas sempre
senti respeito pelo meu trabalho. Agora, a câmara devia intervir, devia apoiar
outras pessoas como eu. Há mais pessoas assim, sobretudo quem escreve e tem
blogues. O mínimo que a câmara poderia fazer era responder, às vezes fazem-no,
mas muito raramente. A senhora vereadora da cultura nunca me responde. Uma vez
estive num debate e disse-lhe que nunca me respondia. Ao que ela respondeu: “o
senhor mandou [uma mensagem]?”. Disse-lhe que também tinha publicado n’ O
Despertar e veja a resposta: “nunca ligo ao que os jornais dizem”. Isto é o
cúmulo.
O facto de não responderem poderá
estar relacionado com falta de argumentos de defesa?
Não acho que seja uma falta de
argumentos de defesa, acho que este poder está assente em falsos valores. Era
preciso uma nova filosofia, entender que o poder em si tem que servir para
servir. O poder conquistado nos votos, ou de outra forma qualquer, tem que
servir para servir o próximo, quem nos rodeia. O poder local deveria servir
para resolver os problemas dos seus cidadãos, dos seus munícipes. Na minha
perspetiva acontece o contrário, ao conquistarem o poder fecham-se, tomam-se de
uma importância que não têm. Depois saem de lá e no mundo da rua já são comuns,
como se descessem de um pedestal. Aí já nos cumprimentam, mas quando estão na
câmara isso pode já não acontecer.
Participa em alguma organização
de defesa da Baixa?
Não. Sou associado da Agência de
Promoção da Baixa de Coimbra, uma agência de humanização da Baixa. Sou
associado, como qualquer comerciante, não tenho algum cargo para além disso.
Isto de intervir faço-o apenas por gosto. Muitas vezes pergunto-me porque faço
isto. Primeiro, é porque gosto de escrever e faço-o muito facilmente. Penso que
os talentos devem ser postos ao serviço da comunidade. Raramente escrevo sobre
mim ou sobre o meu negócio no meu blogue. Sobre mim, as coisas estão lá, mas
tento de por de lado a vaidade.
Como acha que a Câmara Municipal
de Coimbra tem gerido a Baixa?
Não sou partidário político, faço
política no sentido da polis. Faço-a no sentido de a defender, não estou ligado
a nenhuma organização partidária e estou convencido que nunca estarei. Sou um
independente, não há ninguém independente digamos. Às vezes defendo umas coisas
de direita, às vezes de esquerda, é o que calha. Depende da minha linha de
pensamento, tento reger-me por isso e não pelo que os outros pensam. Portanto,
acho que seja este executivo, como os anteriores, nunca se interessaram
minimamente pela Baixa. Não tenhamos ilusões. Temos que ser honestos, as
câmaras não podem fazer muita coisa, pelo menos mexer muito nos centros
históricos. Nomeadamente porque um dos maiores cancros dos centros históricos
são os regimes de arrendamento urbano. Até aqui têm estado limitados devido a
isso. Fez-se agora uma alteração do regime de arrendamento urbano, mas se
calhar é pior a emenda que o soneto. Têm feito isto de forma abandalhada, sem
ter em conta as necessidades das pessoas, que estão num momento muito frágil da
sua vida. Isto vai levar mais à miséria, porque as pessoas não têm meios, estou
a falar do arrendamento urbano e comercial. As pessoas não podem pagar rendas
excessivas quando o rendimento do comércio e dos particulares está em
decréscimo. Por outro lado, a insensibilidade de quem está à frente dos
executivos municipais tem levado a que se licencie tudo o que são grandes
superfícies.
O regime de arrendamento urbano
tem sido uma lástima desde o início da Primeira República, desde 1910 que isto
foi um problema. Os partidos políticos sempre usaram os regimes de arrendamento
urbano para se beneficiarem eles próprios através do voto. Por outro lado, a
partir de 1990 a câmara tem feito licenciamentos desbragados.
A câmara tem tido políticas negativas
em pequenas coisas. À noite, na Baixa, muitas vezes não há luz. Isto porque
desapareceram os reclames publicitários, porque as taxas que incidem sobre eles
tem sido qualquer coisa de imensurável. As lojas há trinta anos tinham néones,
mas estas ‘cabeças pensantes’ acharam que estes não podiam estar nos centros
históricos. É inconcebível. Porque é que um néon, que dá cor ao meio e o
projeta, não é compatível com um centro histórico? As lojas, como também têm
que poupar na luz, fecham as montras. As ruas são um deserto sem luz. As
câmaras não têm tido nenhuma intervenção nos centros históricos.
Isto deve-se a uma constante
falta de organização ou prende-se com a conjuntura atual?
Não, a conjuntura atual é apenas
mais um precipício no meio de tantos outros. O problema da decrepitude da Baixa
começou em 1993, quando abriu o Continente e a Makro. Começou aí, porque quando
as grandes superfícies começaram a surgir, as pessoas começaram a
deslocalizar-se da Baixa para esses centros. Na compra e, também, na habitação.
A habitação na Baixa sempre foi muito decrépita, insalubre quase, com poucas
condições de bem-estar. Então, onde as grandes superfícies montaram as suas
estruturas, criaram-se novas zonas de habitação e novas centralidades. Houve
uma descentralização daquele habitante com mais poder económico. Para os
habitantes com menos poder económico a câmara criou bairros de habitação social
fora da cidade. Com essas medidas esvaziaram o centro histórico, está vazio de
pessoas que cá moravam e de compradores. Eles deslocaram-se para as grandes
áreas. Como isto é um processo contínuo, desaparecendo pessoas, a Baixa
torna-se mais insegura e desaparecendo compradores, o comércio torna-se fraco.
As pessoas não vêm porque não há oferta, não há aqui uma loja de marca.
Livraria e lojas de artigos para computador são poucas, há ramos que estão a
desaparecer sistematicamente daqui. Tudo isso conflui numa nova oferta e maior
empobrecimento e esvaziamento desta zona da cidade.
Qual será a tendência para as
lojas como a sua?
A tendência é para fechar, porque
neste momento a procura está completamente em queda e em contração. Como não há
procura, vende-se pouco. É muito difícil aguentar porque os custos são muito
grandes, nomeadamente com rendas. A oferta destas lojas vai ser cada vez menor
e as alterações fiscais vão também mexer muito com as feiras, onde as pessoas
querem vender as suas coisas. Se as obrigações fiscais forem muito grandes, as
pessoas nem tentam. Ao não tentarem está-se a limitar a liberdade de
nascimentos. A lei tem que ser flexível, não pode ser uma tábua onde as pessoas
a seguem à letra. Tem de haver uma interpretação, na medida em que cada caso é
um caso.
A situação está a tornar-se irreversível?
Não acho que nada seja
irreversível. Tudo é reversível, é preciso é vontade humana para fazer essa
reversão. O que acontece aqui com este poder autárquico, e com outros que
virão, é que isso não é possível. Era preciso de boa vontade, nas assembleias
municipais deviam estar pessoas que representassem os seus lugares, mas sem
ganhar nada. Os presidentes das Juntas de Freguesia, antes do 25 de Abril, não
ganhavam nada. Eram eleitos pelo prazer de servir o próximo. Deviam-se eleger
pessoas capazes de defender a sua rua, o seu bairro. Enquanto se elegerem
pessoas por interesses próprios, no sentido de lucro, não há hipóteses
nenhumas. As pessoas não estão preparadas para defender o bem-comum.
A Baixa está preparada para a
candidatura para Património Mundial da UNESCO?
Pessoalmente não acho. Antes de
se investir numa classificação, devia se investir na formação. Podemos ter
muitos títulos, podemos ser doutorados, mas o que interessa sem não houver a
consciência das fragilidades para o qual se está vocacionado? Dentro dessa
vocação há que fazer cada vez mais. As classificações são importantes, não há
dúvida, mas é preciso apostar na formação das pessoas. Diariamente as pessoas
põem o lixo fora de casa a qualquer hora, escrevo muitas vezes sobre isso. A
educação dá-se quando se é criança, é possível uma formação de aperfeiçoamento,
mas ninguém se importa. Acontece que vamos ter uma classificação, mas os
procedimentos continuam a ser os mesmos. Os proprietários não têm dinheiro para
restaurar os prédios, os particulares que moram por aí têm um vidro partido da
janela, não o mudam, por exemplo. Isto tem que mudar, classificar uma zona de
património com interesse mundial é importante, mas estão a fazer tudo ao
contrário.
Isto remete de novo para a
questão da cidadania.
A cidadania não nasce connosco. A
sensibilidade nasce connosco e está ligada à cidadania, mas esta desperta-se. É
preciso despertar as pessoas, ajudar o próximo. É uma questão lógica, se eu
ajudar o vizinho, ele amanhã ajuda-me. É preciso incutir nas pessoas que é
preciso intervir no nosso bairro, onde moramos. Se fosse possível formar um
bloco de defesa de uma rua ou de um bairro, nós certamente seremos mais
felizes. Por outro lado, era preciso que quem está no poder nos olhasse com
outros olhos. Com olhos de camarada, no sentido de estarmos do mesmo lado. Sinto
muitas vezes o contrário. Uma vez estava a tirar uma fotografia a uma obra e um
fiscal da câmara perguntou-me ao que se devia. Perguntei-lhe porque estava a
embirrar comigo, expliquei-lhe quem era e disse-lhe que estava a tirar uma
fotografia a um ato público. No fundo, estava a noticiar um ato público e ele
era um interveniente. Apertei-lhe a mão e disse-lhe que estávamos do mesmo
lado, ele pediu-me desculpa por ter sido mal interpretado. Deu-se uma reversão
[do comportamento]. A denúncia, para mim, é sinónimo de dar a cara. Sou
completamente contra denúncias anónimas, o Estado nem devia aceita-las, num
Estado democrático não devia ser assim. Quem exerce o poder devia olhar para as
denúncias identificadas como uma pessoa que quer ajudar, mas isso não tem sido
feito.
(TRABALHO ENVIADO, POR E-MAIL, PARA CONHECIMENTO À CÂMARA MUNICIPAL DE COIMBRA)
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