Neste domingo último, estava um
dia cinzento e negro com intervalos de chuva copiosa. Na sexta-feira anterior
eu lera na primeira página d’O Despertar que o Circo Soledad Cardinali estava
em Coimbra. Após o almoço, calmamente, coloquei os pés ao caminho em direcção ao
“Choupalinho”, queria sentir o “maior espectáculo do mundo” de uma outra forma.
Não como espectador comum, que como máquina de fotografar capta apenas a imagem
que todos apreendem, mas como investigador, que começa por visitar as
traseiras.
Enquanto descia a rampa para o
terreno transformado em palco da cidade, dei por mim a constatar que a última
vez que fui ao circo teria sido por alturas de 1990 quando os meus filhos eram
pequenos. Ou seja, passaram mais de vinte anos e nunca mais coloquei os pés
numa tenda de diversão circense. Porquê? Foi a interrogação que me ficou a
bailar. Será pelo facto de associarmos circo a crianças? Mas como explicar o
facto desta representação artística ser tão elevada no estrangeiro, por exemplo,
no Mónaco em que os príncipes fazem questão de marcar presença e arrastar toda
a classe alta monegasca? Ali não há apenas crianças. Há também muitos adultos e
de todas as classes sociais. Será que em Portugal a arte circense é considerada
pobre não apenas pelo desinteresse de incentivo inscrito no plano financeiro
mas, sobretudo, pelo abandono de quem nos rege? Ou seja, se os ocupantes da
cadeira do poder não frequentam o circo, levando atrás de si a imprensa, como
pode o povo ser sensibilizado para esta habilidade ao vivo? Quantas vezes se
viram um Presidente da República no Coliseu dos Recreios, em Lisboa? E um
Primeiro-ministro? E aqui em Coimbra quantos presidentes da Câmara Municipal
foram vistos dentro de uma tenda a assistir a uma performance artística? E
vereadores? Mais à frente, ouvindo os profissionais da arte do trapézio e malabarismo,
tenho a certeza de que não conseguirei dar respostas conclusivas, mas, pelo
menos, tentarei obter um outro plano de avaliação.
Estou agora nas traseiras da
grande tenda central, junto aos animais, tigres e póneis. Tendo em conta a
grande preocupação que varre o país com os irracionais, em detrimento hipócrita
da sorte dos humanos, verifico que todos me parecem bem tratados e com bom
aspecto. Comparando com umas galinhas, um cão e vários gatos que alimento no meu
quintal e que tanto me esforça, mentalmente tento imaginar o custo
incomensurável para manter estes seres vivos felizes. Vejo que estão rodeados
de “roulottes” com boa aparência. Em exercício rápido, imagino quantas famílias
ali viverão como saltimbancos de terra em terra. Quantos sorrisos ali teriam
ecoado de contentamento? Quantas lágrimas de dor, sentidas na solidão daquelas
pequenas casas de rodas, teriam passado nestas vivendas ambulantes?
Faltava ainda meia hora para a
apresentação. Observo os rostos das pessoas com quem me cruzo. Em todos
pressinto uma tristeza inexplicável, uma doçura angelical, mas ao mesmo tempo
uma serenidade imanente e constante. É como se, nas suas faces calcadas pelo
arrostar do tempo, a felicidade tivesse petrificado e, naquele rir a meio rir,
os preparasse para um futuro que só a Deus pertence. Há alguma azáfama em ter
tudo pronto para a matiné que começa
impreterivelmente às 16h30. Desde o mais novo ao mais velho, todos trabalham
para que tudo corra bem. Como numa comuna todos são representativos da vontade
e importantes para erguer a obra. Uns varrem, outros limpam as cadeiras, outros
colocam as grades de ferro protectoras para a actuação dos tigres, calculo. O
ambiente é muito acolhedor dentro da gigantesca tenda aquecida e preparada
para, creio, à volta de três centenas de assistentes. “PSSIU”! Apagaram-se as
luzes.
(CONTINUA AMANHÃ)
Sem comentários:
Enviar um comentário