quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

EU LIBERAL FRUSTRADO ME CONFESSO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)


 Quando fui surpreendido pelo 25 de Abril de 1974, estava então com 17 anos e não tinha a mínima noção sobre política. Não fazia qualquer ideia de que tratava o tema. Trabalhava então no comércio, aqui na Baixa da cidade. Recordo que, perante os ventos revolucionários que invadiram todos os cantos e recantos das lojas do mesmo comerciante onde laborava e que nessa altura teria cerca de 15 empregados, a preocupação do patrão foi mentalizar-nos de que os comunistas haveriam de ser a desgraça deste país. O Partido Social Democrata, com Sá Carneiro à cabeça, no meio da nomenclatura, era o único que se salvava e defendia o bem comum, entre patrões e empregados. Desde o início que me fazia alguma espécie aquela aversão aos marxistas-leninistas. Para tentar perceber quem eram esses seres extraordinários, que até “comiam meninos ao pequeno-almoço”, durante alguns anos fui leitor do Diário, jornal identificativo do PCP, mas nunca cheguei a uma conclusão clara. Uma noite, na véspera de ir de férias já marcadas antecipadamente e com planos traçados, não dormi a ler a “Vigésima quinta hora”, de Virgil Gheorghiu. Uma expressão que nunca tinha ouvido falar e que guardei foi “carne para canhão”. Às nove horas da manhã apresentei-me ao serviço e fui informado de que, por razões de força maior, não iria no dia seguinte para férias. “Passei-me dos carretos”. Irritado e certamente a espumar pela boca, atirei ao patrão: olhe lá, o senhor pensa que um empregado é carne para canhão, ou quê? Só me lembro de ver o homem à minha frente como um negro, em África, a dançar em volta da fogueira, e a exclamar: “é comunista! É comunista! Eu tenho um comunista na minha casa!”. Penso que, com o tempo, esta catalogação lhe teria passado. A verdade é que estive lá 9 anos e despedi-me por minha iniciativa. Modéstia à parte, chegou a prometer-me “mundos e fundos” para eu não sair. Ainda bem que o fiz. Quem por lá ficou, dos meus antigos colegas, há poucos anos, por insolvência e pouca consideração dos sucessores, nem a declaração para o subsídio de desemprego tiveram direito.
Lembro-me, quando cumpria o serviço militar em Estremoz, um dia, fui a uma consulta ao Hospital Militar de Évora e na volta apanhei boleia de uns civis. Nos cerca de 30 quilómetros que separam as duas cidades alentejanas levei uma lavagem ao cérebro que ia ficando desmiolado. A conversa girou sempre em torno de “camarada, temos de tomar os quartéis, se preciso for, pela força! Estás connosco, não estás, camarada?”
O tempo foi passando e eu conservei-me sempre distante das lides partidárias. Ideologicamente, nunca me senti próximo de nenhum. No entanto, isso sei, estabeleci-me por conta própria em 1982 e comecei a pensar como patrão. Isto é, comecei a ler umas coisas sobre o liberalismo, desde Aristóteles, até Adam Smith, no Iluminismo, e, nessa altura, finalmente julgava ter encontrado uma doutrina que me identificava plenamente. Por volta de 1986, mais coisa menos coisa, no tempo de Cavaco Silva, fui assistindo ao afastamento do Estado na economia. Progressivamente foi-se implantando a liberdade de cada um estabelecer o preço do seu produto, com a concorrência a servir de fiel de balança, e eu achei que estava correcto. O lugar do Estado era apenas servir de árbitro e deixar correr a compra e venda nos rios da liberdade contratual. Até que por imposição de Bruxelas se começou a desnacionalizar a banca. Mais recentemente, com a liberalização dos combustíveis, havendo apenas menos de meia-dúzia de operadores, comecei a ver que o liberalismo que sempre me norteou estava a beneficiar claramente um pequeno grupo em detrimento do colectivo. Os aumentos têm sido o que se sabe. A seguir foram as telecomunicações. Depois a saúde, com o aparecimento de hospitais particulares e as PPP, Parcerias Público Privadas. Depois foi a legislação do trabalho –não que não achasse que era necessária uma mexida, mas em que, com ponderação, fossem salvaguardados os direitos dos trabalhadores. Agora são as rendas de casa, em que, perante a quebra de rendimentos do trabalho, se assiste a uma violência inacreditável sobre os inquilinos, particulares, impondo a expulsão de pessoas para debaixo da ponte por não poderem pagar. No arrendamento comercial, sem nada se fazer, favorece-se claramente os proprietários deixando-os à vontade para, no seu direito, pedirem as rendas que quiserem e, em contrapartida, lhes serem impostas obrigações de contribuírem para o bem comum de praticarem valores aceitáveis. Como? Há vários instrumentos que o legislador pode pôr mão. Um deles, por exemplo, é que em rendas com tecto superior a 500 euros paguem um alto imposto em sede de IRS, por exemplo, de 40 por cento. Haverá outros meios, mas, de facto, esta forma será a mais subtil e incisiva para baixar o rendimento do capital para níveis aceitáveis e menos especulativos. Um estabelecimento comercial é um catalisador de criação de riqueza social, portanto, obrigatoriamente, tem de contribuir para os que precisam de trabalhar e ser tratado com mais respeito pelo seu possuidor. Independentemente do individual direito legítimo de propriedade, a riqueza só faz sentido se for um motor de desenvolvimento em prol da sociedade. Não o sendo, não estando ao serviço do público, a fortuna, para além de se tornar bastarda, é aberrante, parasitária e contrária ao interesse comum. É urgente criar medidas que impeçam que uma loja comercial esteja encerrada mais do que meio-ano. Enquanto usufrutuários da cidade, todos temos obrigação de contribuir para a sua revitalização. Ora, um estabelecimento encerrado há vários anos, como são os casos repetidos na Baixa de Coimbra, é uma constante provocação à partilha, aos princípios de solidariedade que todos, enquanto indivíduos, filhos de uma nação em crise, estamos obrigados.
No grande comércio todos sabemos o que está acontecer, a reinar a barafunda, praticando “Dumping”, e, descaradamente, afundando as pequenas lojas de bairro.
Agora, perante os nossos olhos, estamos a ser assaltados diariamente pelos bancos com comissões abusivas. Ainda hoje disse no banco com quem trabalho se teimarem em me retirar comissões apresento uma participação no DCIAP por furto simples e abuso de confiança. A verdade é que, pelo menos por agora, fizeram a reposição das verbas confiscadas abusivamente. Mas não tenho ilusões, estes especuladores, piores que assaltantes de cara descoberta, vão voltar e ainda com mais força. Infelizmente, como tudo indica, o Governo não está interessado em travar este ilícito arresto. Por isso mesmo, cabe-nos a nós, individualmente, usando mesmo meios pouco ortodoxos, defender o que nos pertence.
Cada vez mais me sinto afastado deste liberalismo que sempre julguei nortear. É preciso colocar um travão nesta ideologia que explora os mais fracos em descarado benefício dos mais ricos.

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