Foi mais ou menos a meio da manhã
quando dei de chofre com ele. Era um homem alto, entroncado, com um chapéu na
cabeça que tapava uma cara arredondada, tipo "boxeur", que se fazia acompanhar de
duas muletas estateladas no chão da calçada. Estava sentado de pernas cruzadas
na Rua Eduardo Coelho, junto à antiga e encerrada sapataria Reis. Com as calças
recuadas, as pernas deixavam antever, embora ligeiramente, umas leves
cicatrizes cuja idade se teria perdido nos confins da memória. A sua ladainha,
num português sem solavancos, era, para mim, sobejamente conhecida: “ajude o
pobre desgraçado, senhor!”. Imediatamente, intui com meus botões que estaria
perante um excelente “performer” da pedincha, de nota 20. Mas o que me fez
parar foi a sua expressão sofrida. Aquele homem era um verdadeiro artista no
sentido lato do termo. Era impressionante o contorcionismo da face, com a cabeça
a inclinar-se, para conseguir, com grande facilidade, "tocar" os transeuntes. As
mãos, em concha, completavam um cenário previamente estudado em longas noites
de labuta. E era bem-sucedido. O barulho das moedas a caírem no fundo do
pequeno copo plástico era contínuo e musical numa nota de dó maior. Mentalmente,
ensaiei o desejo de lhe pedir para tirar uma foto –porém, declinei no propósito
uma vez que, se o fizesse, estragaria o seu “negócio”, pensei para comigo.
Quando ele saiu do turno da
manhã, certamente para ir almoçar, reparei que andava sem dificuldade. Especulando,
tentei adivinhar uns 25 euros nestas três horitas de choradinho. No seu passo
ligeiro, as canadianas não serviam para nada e iam penduradas no antebraço. Não
resisti em trocar umas impressões com ele. Num português quase correcto, foi-me
dizendo que é turco e está em Portugal há mais de uma dezena de anos -os seus dois dentes de ouro atestavam que pelo menos seria de um país de leste. Trabalhou
nas obras de construção do Estádio do Beira Mar, em Aveiro, e também no Estádio
de Leiria, onde teve um grave acidente e fracturou várias vértebras cervicais. O
caso arrasta-se nos tribunais à espera da legítima indemnização. Ficou
impossibilitado para trabalhar, diz-me de cara séria para eu acreditar. “Recebo
duzentos e poucos euros. Sou diabético, tenho de comprar insulina à minha
conta. Diga-me lá, como é que eu posso viver com estas migalhas? Bem sei que
sou estrangeiro, da Turquia, mas cheguei aqui cheio de boa saúde e hoje estou
inválido. Foi cá que tive o desastre. Um dia quando regressar à minha terra já não serei o mesmo que de lá se despediu há muitos anos. Você entende o que
quero dizer?”
Porque tenho uma lata como a dele,
e não passo de um desavergonhado, lá lhe fui dizendo, no meio de um sorriso
macaco, a brincar, que a construção civil poderia ter perdido um bom servente,
mas Portugal ganhou um bom artista, um excelente actor. E o homem riu a bandeiras desfraldadas.
No turno da tarde, na esquina do
Largo da Freiria, o óbolo vindo sobretudo de mulheres –digo isto por
experiência própria, porque também sou artista e já estive no lugar dele a fazer
a mesma coisa-, um trocadilho de notas musicais -sem notas de euro-,
misturava-se com a sua lengalenga. Sempre que um novo níquel tocava o fundo do
copo, sub-repticiamente, ele olhava para mim e piscava-me o olho, como se
dissesse: “ó colega, estes teus conterrâneos são mesmo muito estúpidos. Porque
é que tu não mudas de vida e vens para a minha nova arte?”
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