domingo, 1 de julho de 2012

UMA FLOR DE PAPEL

(IMAGEM DA WEB)


 Encontraram-se, por acaso, na entrada do grande restaurante de self-service. Ambos estavam sozinhos. Ela teria cerca de 45 anos. Era uma mulher muito bonita. A sua silhueta dava nas vistas. Cabelo preto pelos ombros, óculos escuros incrustados num rosto oval amendoado em imagem de perdição. Uns lábios carnudos, com leve toque de batom, prometiam o céu. O peito estava revestido com uma camisete branca com leve decote, pouco pronunciado, onde se adivinhavam dois seios pequenos, seguros e túrgidos. Uma calça de ganga bem ajustada ao corpo mostrava umas ancas bem torneadas onde confluía um traseiro imaginado num carnaval do Rio de Janeiro. Ela atrasou os óculos escuros para a nuca e deixou ver uns maravilhosos olhos verdes.
O homem, de meia-idade, pensando para com seus botões, tentou adivinhar o que faria profissionalmente a mulher; pelo porte formal, deveria ser professora. Com redobrado interesse, olhou e, como ficasse hipnotizado perante um misterioso fluído ou perfume libidinoso, segui-a sem a largar mais. Parecia um cão pisteiro da GNR atrás de um odor suspeito. Ambos, um atrás do outro, pegaram no tabuleiro e em direcção ao balcão onde escolheram e apanharam o prato selecionado do almoço. Ela, como se deslizasse sobre nuvens de algodão, movimentando-se como folha tocada pelo vento em outono invernoso, alheia, a toda a vigilância do perseguidor, parecia não dar conta da cobertura de todos os seus passos. Ele, com meticulosa espera, ia atrasando o seu serviço para que ela o ultrapassasse e para ver o lugar em que ela se sentaria. Como se fosse um casal, ambos confluíram para a caixa de pagamento ao mesmo tempo, um atrás do outro.
Com ele atrás, ela dirigiu-se para a zona de mais luminosidade e onde o sol beijava e acariciava todos sem pedir licença. No canto da sala, um plasma debitava imagens de notícias sem som. Colocando a carteira ao seu lado, sentou-se e começou a comer. O homem, depois de a ter seguido como cachorro atrás de fêmea, acomodou-se na mesa ao lado. O olhar dela, triste, de grande sofrimento, impregnava um ar santificado e metafísico. Parecia alheia a tudo o que a rodeava e como se não reparasse no assédio do companheiro do lado que, com o seu olhar buscando o dela, parecia querer envolver aquele brilho baço num abraço de enleio. Nem uma só vez os seus olhos se encontraram. O galã, como farol na noite escura, insistia em varrer a área mas a traineira em direcção ao horizonte, em piloto automático, não dava acordo de si e mareava para um infinito perdido e por si programado. Quanto mais o homem insistia num mirar de súplica mais ela, de forma elegante, altaneira e garbosa, como driblando o adversário com grande perícia, fugia ao encontro de olhos nos olhos. A meio da refeição, como se precisasse de uma paragem para abastecer e retomar forças, puxou do telemóvel e, sem cuidados em baixar a voz, falou para alguém conhecido acerca de uma reunião escolar. Era professora, pensou o homem para si, tinha mesmo razão ao intuir o “metier” da diva. Acabou a conversa e avançou para a refeição.
O observador continuava preso naquele rosto carregado de nostalgia e solidão. Mentalmente ia traçando cenários hipotéticos de causa-efeito. Que homem, sem sentimentos, seria capaz de magoar assim uma deusa, Afrodite, daquela maneira. Por momentos uma ruga atravessou a sua fronte. Afinal, quem vê caras não vê corações. Não tinha ele essa experiência em casa? Não era a sua esposa uma bela mulher? No entanto, para si, era agressão personificada. Um meio sorriso invadiu a sua face: tudo o que se viveu foi bonito de recordar. Mas, como todas as coisas, as relações têm prazo de validade, princípio, meio e fim. Mas por que tem de ser assim? Pareceu ele interrogar, desviando o seu ponto de atenção e, como se pedisse ajuda, colocando os olhos em riste no tecto branco. Porque é que antigamente os casamentos eram longos e agora não? Bom, também é certo que a maioria, numa infelicidade atroz, resistia apenas como painel pintado em cenário teatral. Mas, mesmo assim, no meio de tanta hipocrisia, havia muitos pares felizes, onde, apesar da carência de quase tudo, a concórdia, a paciência e a tolerância reinavam. Para onde foi tudo isso? Porque, como inimigos figadais, como se nunca se tivessem visto, agora, se agridem tanto os casais? Será que o desenvolvimento dos povos, a abastança no modelo de bem-estar, as opções desenfreadas, o "usar e deitar fora", conduzem inevitavelmente ao narcisismo e a um identitário individualismo na família? E a religião? Que papel tem o “re-ligar” das coisas terrenas com o transcendente? Será mesmo que, nestes nossos dias, quem a pratica, quem vai à igreja, saberá para que serve a mensagem de Cristo? Se não se tiver abertura aos ensinamentos, em reflexão, tendo o coração escancarado para aceitar, a Sua palavra não servirá para nada e, como chuva em solo gretado e árido, perder-se–á nos confins do desconhecimento. É preciso partir do recado do bem-fazer para a prática do “fazer bem sem olhar a quem”. Parecia pensar o homem sentado a reflectir.
O homem olhou para a sua musa, para a mesa ao lado, estava quase a concluir. Calmamente, retirou um guardanapo de papel e, como mestre de coisa nenhuma, rasgando aqui, torcendo acolá, começou a fazer uma flor. A mulher levantou-se e, sem nunca olhar o seu admirador, caminhou em direcção à porta. Ele seguiu-a com o objecto alegórico à rosa na mão. A meio das escadas interpelou-a: “e, se de repente, um desconhecido lhe oferecesse uma flor de papel, aceitava?”
A mulher, como se estivesse à espera daquilo mesmo, sem surpresa, abrindo o seu lindo rosto num imenso sorriso de luz, exclamou: “claro que sim. Muito obrigado!”

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