(IMAGEM DA WEB)
Encontraram-se, por acaso, na entrada do grande
restaurante de self-service. Ambos estavam sozinhos. Ela teria cerca de 45
anos. Era uma mulher muito bonita. A sua silhueta dava nas vistas. Cabelo preto
pelos ombros, óculos escuros incrustados num rosto oval amendoado em imagem de
perdição. Uns lábios carnudos, com leve toque de batom, prometiam o céu. O
peito estava revestido com uma camisete branca com leve decote, pouco
pronunciado, onde se adivinhavam dois seios pequenos, seguros e túrgidos. Uma
calça de ganga bem ajustada ao corpo mostrava umas ancas bem torneadas onde
confluía um traseiro imaginado num carnaval do Rio de Janeiro. Ela atrasou os
óculos escuros para a nuca e deixou ver uns maravilhosos olhos verdes.
O homem, de meia-idade, pensando
para com seus botões, tentou adivinhar o que faria profissionalmente a mulher;
pelo porte formal, deveria ser professora. Com redobrado interesse, olhou e,
como ficasse hipnotizado perante um misterioso fluído ou perfume libidinoso,
segui-a sem a largar mais. Parecia um cão pisteiro da GNR atrás de um odor suspeito.
Ambos, um atrás do outro, pegaram no tabuleiro e em direcção ao balcão onde escolheram
e apanharam o prato selecionado do almoço. Ela, como se deslizasse sobre nuvens de algodão, movimentando-se como folha tocada pelo vento em
outono invernoso, alheia, a toda a vigilância do perseguidor, parecia não dar
conta da cobertura de todos os seus passos. Ele, com meticulosa espera, ia
atrasando o seu serviço para que ela o ultrapassasse e para ver o lugar em que
ela se sentaria. Como se fosse um casal, ambos confluíram para a caixa de
pagamento ao mesmo tempo, um atrás do outro.
Com ele atrás, ela dirigiu-se
para a zona de mais luminosidade e onde o sol beijava e acariciava todos sem
pedir licença. No canto da sala, um plasma debitava imagens de notícias sem
som. Colocando a carteira ao seu lado, sentou-se e começou a comer. O homem,
depois de a ter seguido como cachorro atrás de fêmea, acomodou-se na mesa ao
lado. O olhar dela, triste, de grande sofrimento, impregnava um ar santificado
e metafísico. Parecia alheia a tudo o que a rodeava e como se não reparasse no
assédio do companheiro do lado que, com o seu olhar buscando o dela, parecia
querer envolver aquele brilho baço num abraço de enleio. Nem uma só vez os seus
olhos se encontraram. O galã, como farol na noite escura, insistia em varrer a área
mas a traineira em direcção ao horizonte, em piloto automático, não dava acordo
de si e mareava para um infinito perdido e por si programado. Quanto mais o
homem insistia num mirar de súplica mais ela, de forma elegante, altaneira e
garbosa, como driblando o adversário com grande perícia, fugia ao encontro de
olhos nos olhos. A meio da refeição, como se precisasse de uma paragem para abastecer e retomar forças, puxou do telemóvel e, sem cuidados em baixar a voz, falou para alguém
conhecido acerca de uma reunião escolar. Era professora, pensou o homem para si,
tinha mesmo razão ao intuir o “metier” da diva. Acabou a conversa e avançou para a
refeição.
O observador continuava preso
naquele rosto carregado de nostalgia e solidão. Mentalmente ia traçando
cenários hipotéticos de causa-efeito. Que homem, sem sentimentos, seria capaz
de magoar assim uma deusa, Afrodite, daquela maneira. Por momentos uma ruga
atravessou a sua fronte. Afinal, quem vê caras não vê corações. Não tinha ele
essa experiência em casa? Não era a sua esposa uma bela mulher? No entanto,
para si, era agressão personificada. Um meio sorriso invadiu a sua face: tudo o
que se viveu foi bonito de recordar. Mas, como todas as coisas, as relações têm
prazo de validade, princípio, meio e fim. Mas por que tem de ser assim? Pareceu
ele interrogar, desviando o seu ponto de atenção e, como se pedisse ajuda, colocando
os olhos em riste no tecto branco. Porque é que antigamente os casamentos eram
longos e agora não? Bom, também é certo que a maioria, numa infelicidade atroz,
resistia apenas como painel pintado em cenário teatral. Mas, mesmo assim, no
meio de tanta hipocrisia, havia muitos pares felizes, onde, apesar da carência
de quase tudo, a concórdia, a paciência e a tolerância reinavam. Para onde foi
tudo isso? Porque, como inimigos figadais, como se nunca se tivessem visto, agora,
se agridem tanto os casais? Será que o desenvolvimento dos povos, a abastança
no modelo de bem-estar, as opções desenfreadas, o "usar e deitar fora", conduzem
inevitavelmente ao narcisismo e a um identitário individualismo na família? E a
religião? Que papel tem o “re-ligar” das coisas terrenas com o transcendente?
Será mesmo que, nestes nossos dias, quem a pratica, quem vai à igreja, saberá
para que serve a mensagem de Cristo? Se não se tiver abertura aos ensinamentos,
em reflexão, tendo o coração escancarado para aceitar, a Sua palavra não
servirá para nada e, como chuva em solo gretado e árido, perder-se–á nos
confins do desconhecimento. É preciso partir do recado do bem-fazer para a prática
do “fazer bem sem olhar a quem”. Parecia pensar o homem sentado a reflectir.
O homem olhou para a sua musa,
para a mesa ao lado, estava quase a concluir. Calmamente, retirou um guardanapo
de papel e, como mestre de coisa nenhuma, rasgando aqui, torcendo acolá, começou
a fazer uma flor. A mulher levantou-se e, sem nunca olhar o seu admirador,
caminhou em direcção à porta. Ele seguiu-a com o objecto alegórico à rosa na mão. A meio das
escadas interpelou-a: “e, se de repente, um desconhecido lhe oferecesse uma
flor de papel, aceitava?”
A mulher, como se estivesse à
espera daquilo mesmo, sem surpresa, abrindo o seu lindo rosto num imenso
sorriso de luz, exclamou: “claro que sim. Muito obrigado!”
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