Para além da coluna "Na morte lava-se a alma", deixo também os meus textos "Reflexão: a lei do desejo", "Uma artista na nossa rua: a Abadessa" e "Rostos nossos (des)conhecidos: o "Paixão"".
NA MORTE LAVA-SE A ALMA
Há um ano, na data de 26 de junho,
faleceu o Luís Miguel, mais conhecido entre nós por “Aspirante” –o Luís tinha
40 anos quando num estúpido acidente adormeceu na berma do Mondego e, segundo o
pai Max, veio a cair no rio. Era tratado pela alcunha de “Aspirante”
precisamente porque fora a patente que tivera enquanto cumprira o serviço
Militar. Enquanto decorria o tempo de tropa viera a sofrer um grave desastre,
em que faleceu um seu amigo. Pelos danos causados, nunca mais recuperaria o
senso. Durante muitos anos vagueou pela cidade. Aparentemente, não desencadeava
exteriorizações de extraordinário afeto. Parecia ser apenas mais um personagem
que deambulava pelas ruas estreitas e largas do casco urbano de uma cidade
velha.
Quando, nessa altura, escrevi a
crónica a anunciar o seu precoce desaparecimento, para além de ter recebido
mais de uma vintena de comentários dolorosos e a lamentar a sua morte, só nesse
dia tive 8438 visitas aos textos que reportavam a sua passagem entre nós –a
média diária de visitantes assinalados anda por volta de 500.
Há dias escrevi sobre a morte
súbita do Adelino Paixão, noticiada pelo jornal Diário as Beiras -o Paixão, tal
como o Luís Miguel, era mais uma figura típica da Baixa que, também na
aparência, poucos lhe ligavam. Nesse dia, abruptamente, o blogue disparou
também o contador de visitas.
Depois desta longa introdução,
penso que dá para ver onde quero chegar. O que pode explicar que durante a vida
errante destas pessoas, durante muitos anos, enquanto circularam por entre nós,
nunca lhes tivessem ligado muito, nem dado qualquer importância, e depois,
subitamente, quando colocados perante o seu nefasto sumiço, reagem com
redobrado pesar e dor?
Se respondermos sem pensar, assim
no óbvio, estou certo que retorquimos com uma palavra: hipocrisia. Porém, a meu
ver, esta manifestação de luto é muito mais profunda e estranhamente é mesmo
sentida como um corte na alma de cada um. Vou tentar explicar, desbravando o
que está por detrás deste comportamento.
Começaria por interrogar: o que
são estas pessoas numa cidade? Carlos do Carmo, em fado versejado e musicado,
chamou-lhes “loucos na cidade”. Há cerca de 30 anos li uma tese de um advogado
francês –que já não recordo o nome- em que defendia que estes indivíduos,
diferentes da maioria, talqualmente como a pequena delinquência, eram um
quebrar da rotina nas urbes e, na sua ação pragmática, ainda que, por vezes,
negativa, impediam que, em mimética estandardizada, fosse tudo igual.
Imaginemos e transportemo-nos para um agregado onde não se ouve um barulho, uma
imprecação, onde tudo é previsível, onde a paz social é uma constante, um lugar
paradisíaco, será que conseguiríamos viver num lugar assim? Penso que não. O
homem é um ser social/associal, tanto precisa de estar acompanhado como só. É
capaz das maiores demonstrações de carinho, de solidariedade e bondade. No
entanto este mesmo homem, a qualquer momento, é capaz de virar homicida e
assassinar sem mácula na consciência. Se for em guerra, com a desculpa de
estado de necessidade, mata dezenas, centenas, milhares de humanos. É portanto,
em sincronismo, um ser pacífico e conflituoso. Isto para dizer que, para além
de todos sermos bipolares, temos absoluta necessidade de exteriorizar os dois
sentimentos que transportamos dentro de nós como instintos inseparáveis.
Então, chegados aqui, já
poderemos ver que embora todos defendamos a paz social como objeto,
diariamente, no relacionamento com os outros, fomentamos a antipatia, a
desconfiança e a animosidade permanentemente. Isto é, o desejo de pacificação
não é mais do que uma utopia. Por outro lado a ordem que todos parecemos
obsessivamente buscar quando a alcançamos pode já ser o caos –isto tem já a ver
com a dinâmica social e o perfeccionismo que nos consome.
E então, interroga-se, o que tem
estes dislates que escrevi atrás a ver com os dois comportamentos antagónicos
–desprezo em vida e carinho na morte- perante um óbito? Que pode não acontecer
somente com um vagabundo da rua como também com alguém relativamente chegado.
Um falecimento desencadeia sempre
em nós várias sensações desencontradas. Lembra-nos, por exemplo, que somos finitos,
que a nossa vida é efémera e que a qualquer momento podemos perecer –este
pressentimento torna-se mais latente tanto quanto mais velhos estivermos e
próximos do fim. Mas, acima de tudo, na generalidade, acende a luz do perdão,
da caridade, e extingue ódios recalcados. É como se aquela imagem da morte de
outrem nos viesse recordar que somos todos pecadores. Seres frágeis e fracos, e
que, um dia, não se sabe quando, iremos também precisar daquela absolvição.
Digamos que, no nosso viver compulsivo, o desaparecimento de alguém, subitamente,
do nosso conhecimento, toma assim no quotidiano o efeito de choque de um objeto
arremessado na nossa cabeça.
Por outro lado, em relação ao
desaparecimento destas pessoas invulgares -chamemos-lhe dementes- que nos
cruzamos na rua mas que, provavelmente, nunca trocámos uma palavra ou um
sorriso mas que, inconscientemente, passámos a admirá-los, para além do
sentimento de perda, solta também várias intuições diferenciadas. Enquanto
vivos, transeuntes na cidade, olhamos para eles como o outro lado do espelho, o
reverso de nós, a nossa alma despida. Ao mirá-los, naquele estado decrépito, é
como se fizéssemos comparação entre o que somos e o que poderíamos ser.
Vemo-los como a materialização dos nossos medos. E ao constatar que somos
diferentes para melhor recebemos uma mensagem de bem-estar instantaneamente. É
como se ao apreciarmos uma pessoa assim nos obrigasse a um balanço imediato,
mas também passível de ser emergente num futuro próximo, e esta impressão, pela
dureza da imagem viva, ativa a nossa defensiva e alerta-nos para um hipotético
perigo. Esta ilação, em projeção, pode continuar até ao desaparecimento físico
da pessoa fixada pelo nosso olhar. Nesta altura, quando perdemos esta
visualização, haverá um sentimento de culpa que se liberta em pena e dor
materializada na disponibilidade em fazer o que for preciso para colmatar o que
não foi feito anteriormente. Como se, em cada um de nós, houvesse uma implícita
e absoluta necessidade de expiação de culpa pelo lapso. Poderemos pensar que
haverá nesta manifestação um descarregar, um lavar da alma, por, durante anos e
anos, nunca lhe darmos qualquer importância significante.
REFLEXÃO: A LEI DO DESEJO
A semana passada a cidade foi
surpreendida por uma morte bárbara ocorrida numa rua da Baixa. A vítima tinha
apenas 41 anos e ocorreu, segundo se consta, num cenário de droga e
prostituição. Não é preciso dizer que o aumento do crime é contrariamente
proporcional ao estado das Finanças Públicas. O primeiro sobe vertiginosamente
quando as segundas descem. Mas acontece que, independentemente da crise que nos
assola, a recorrência às drogas e à prostituição nunca pararam de aumentar, o
que me leva a pensar que é preciso colocar em prática novos modelos de
sociedade. Se é certo que as duas práticas, o consumo de droga e a
prostituição, nas últimas décadas, já foram despenalizadas e sofreram grandes
alterações, a verdade é que, em face dos resultados, não foi o suficiente.
Somos um povo conservador e agarrado a certos costumes morais que damos como
inatacáveis. Apenas encaramos a repressão como única via possível à lei do
desejo e ao pensar assim estamos a condicionar os políticos para experienciarem
novos paradigmas.
UMA ARTISTA NA NOSSA RUA: A ABADESSA
Quantos de nós já a ouvimos, e
vimos, a tocar extraordinariamente bem concertina nas ruas largas, de Visconde
da Luz e Ferreira Borges? Quantos de nós, nessa altura, não demos conta de que
comentávamos com nossos botões: “é pá!, esta miúda tem talento! Toca bem que se
farta!”. É a Cláudia Alves -sem pretender ofendê-la, vou batizá-la de
“Abadessa”, pelas suas permanentes saias compridas e parecenças com uma mulher
da Idade Média-, é estudante de jornalismo e, naturalmente como todos nós,
precisa de trabalhar para fazer face às despesas porque a vida não está fácil
para ninguém e muito menos para estudante. Aprendeu há cerca de um ano,
sozinha, a tocar concertina. Como gosta tanto de música, e sobretudo do
instrumento a que se dedicou, evoluiu rapidamente e agora até já faz parte do
conjunto “Urtigas”, um outro grupo de foles que, para nosso contentamento,
também costuma estar a tocar junto ao Arco de Almedina. Posso dizer que, tal
como a Cláudia a solo, esta associação de músicos é um encanto para os nossos
sentidos poder apreciar as suas composições –e tanto quanto sei, um dia destes vão gravar um cd de originais.
Voltando à Cláudia, ainda bem
que, com a sua sublime música, alegra os nossos corações. Felizmente que as
nossas ruas, graças a pessoas como ela, e tantos outros de que vou falando
aqui, continuam a ser “enfeitadas” com estas melodias que nos entram diretamente
na alma. Gostava só de chamar a atenção de que é preciso mostrar apreço por
estes artistas ao alcance do nosso olhar. Se puder, dê-lhes um pequeno contributo
monetário e, já agora, sorria, sorria para eles. É importante mostrar-lhes o
quanto lhes estamos gratos por, sem ordenado contratualizado, trabalharem para
todos nós.
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
“O PAIXÃO”
Quando comecei esta nova rubrica
há umas semanas, em que mostro o rosto de muitas figuras típicas que nos fazem
companhia, no dia-a-dia, na Baixa da cidade e dando-lhes nome, um dos que iria
retratar obrigatoriamente seria o Adelino Paixão. Infelizmente, quis o destino
que ele já não pudesse ver. De qualquer modo, em jeito de homenagem póstuma,
porque todo o homem tem direito ao seu minuto de fama nem que seja pelo seu
desaparecimento, aqui fica a lembrança de alguém que, embora vagueasse por
estas ruelas acompanhado, morreu sozinho -como só aos pobres, como castigo de
desventura, acontece assim.
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