Começo por escrever o óbvio: eu
tenho carradas de modéstia. Às vezes até vou na rua e, como gelado suculento
exposto ao sol, ela escorre-me pelo corpo abaixo em pingos de melaço. Faço tudo
para esconder, mas esta modéstia, que se multiplica mais que o meu cabelo, é
demasiado espessa e, apesar de me consumir a alma, não consigo escondê-la. Eu
seja ceguinho, num momento em que tanto se apela à exportação, até já pensei em
espalhar esta qualidade pelo mundo inteiro.
Depois desta espectacular
ressalva, vou partir para outra viagem. Toda a gente sabe que, actualmente, com
a crise da imprensa, os blogues fazem um bom trabalho, sobretudo minucioso,
sobre as sociedades locais. Isto quer seja numa aldeia, vila ou cidade. Estes
novos fenómenos de imprensa amadora retratam ao pormenor, ou chamam a atenção
para factos que os jornais deixam cair. Em metáfora de pesca, digamos que os diários
ou semanários usam uma rede de malha grossa e os blogues usam um calibre muito
fino, onde fica tudo preso. O “peixarão”, que de charuto e barriga avantajada
dá uma de importância e logo é apanhado pelo olho de lince, e o carapauzito,
que não vale um assobio e nem canto no oceano tem para cair morto.
Quem andar atento a estes
prodígios verifica pelo menos três coisas. A primeira é que os ditos
periódicos, que até aqui nunca passaram cartão a quem escreve nestas páginas da
Internet e até recusaram publicar tantas vezes trabalhos destes escritores
anónimos, já entenderam que têm um filão a explorar e agora, como magala a
assediar a sopeira, já se viraram para quem escreve por gosto e por necessidade
de intervir na causa pública; a segunda é que as comunidades, sentindo a
dedicação destas pessoas que, sem nada ganharem em contrapartida, melhor
dizendo, só perdem, escrevem a defender os seus costumes, usos e fragilidades e
fazem sentir o seu reconhecimento; e a terceira é que se num primeiro momento
as autoridades, detentoras do poder até obstaculizaram a acção de cidadania
destes versejadores de bolso, agora, pela popularidade crescente, já dão
atenção diária ao que se escreve nas páginas das redes sociais e tudo o que lhe
está associado e já batem a pala aos mensageiros do beco da carqueja.
Isto tudo para dizer –volto a lembrar
que sou modestíssimo, tanto tanto, que até me faltam as forças para continuar-
que ainda ontem chamava atenção para um caso de alto valor de direito legítimo.
No caso, indignava-me contra o facto de terem retirado um espaço para um grupo
de romenos poder descansar do seu árduo trabalho desenvolvido aqui na Baixa
da cidade. Bem sei que você já se está a rir –desculpe que lhe diga, mas você é
um bruto de insensível. Vou continuar, porque não posso ligar a esse seu
sarcasmo –com licença, vou virar-lhe as costas. Dizia eu, então, que estes
estafados, cansados, fatigados, esforçados trabalhadores, durante os sete dias
da semana, de domingo a domingo, dão no duro, ali nas ruas da calçada, sob um
sol abrasador, no Verão, e uma chuva de molhas tolos –como você, desculpe-, no
inverno. Andam para ali a transpirar, de mão estendida, tal como Jesus Cristo
passeou na Galileia, e os resultados são simplesmente desanimadores. Aliás, é
uma falta de respeito por estes trabalhadores desconsiderados e sem horários.
Acho até que, em face de tanta hora de labuta, deveria ser legislado como
mínimo de esmola 5 euros. Isto não é uma exploração? Quer dizer, toda a gente se
queixa de os enfermeiros ganharem 4 euros à hora e até, estes, fazem greve e os
extenuados trabalhadores romenos? Sim, diga-me você. Estará certo isto? Às vezes
andam ali entre a Praça 8 de Maio e o Largo da Portagem com uma folha a pedirem
assinaturas o dia inteiro para ganharem uns escassos 30 euritos. É justo isto? Pare
de se rir, por amor de Deus, que isto é sério, caramba, tenha maneiras! Eu
estou aqui a denunciar um atentado à dignidade dos trabalhadores. Estas pessoas
desenvolvem um largo e pouco reconhecido labor social. Eles, ao proporem aos
transeuntes uma assinatura numa qualquer folha branca, estão a recuperar a escrita.
Ah pois! É verdade! Num tempo em que ninguém escreve, ninguém assina uma letra
protestada, muito menos um cheque, e já para não falar num postalzito de boas
festas, o que vai acontecer à assinatura pessoal de cada um? É óbvio! Vai
desaparecer. Ora, estes incomensuráveis jornaleiros de causas sociais estão a
recuperar a escrita. Para além do merecido Rendimento Mínimo de Inserção,
deveriam ter também um subsidiozito de mérito cultural. Mas isto não é mais que
certo? Tenho de demonstrar mais alguma coisa? Tenho?
Bom, continuando. Então, depois
de ontem ter escrito o tal texto contra aquele abuso, e certamente a dar-me
completa razão –nem preciso de o escrever-, o que fez a Câmara Municipal de
Coimbra hoje? Logo de manhã, em frente ao Panteão Nacional –o que me deixa
completamente de acordo porque aquilo de Panteão só tem mesmo o nome-, era já
visível uma enorme estrutura com cobertura e suportada por altas colunas em
metal. E para que vai ser aquilo? Ora para que havia de ser, alma de Deus? É
evidente que perante a minha notícia a autarquia deu a mão à palmatória e não
foi de meios meios, mandou edificar um hotel para os trabalhadores de rua. Está
certo! Claro que é mais que justo! Agora, para além de se poderem acomodarem
durante o dia, bebendo uma “bejeca”, e até baterem uma soneca durante a sesta,
podem pernoitar gratuitamente durante a noite. Você está a rir-se de quê? Você
até me irrita, porra! Perante tanta falta de susceptibilidade da sua parte, se
não fosse cá por coisas até lhe atirava com esta crónica à “tromba”. Desculpe,
estou irritado, bem sei, mas não aguento essa sua cara de safado. Olhe, só por
isso, nem escrevo mais nada. Fosca-se!
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