Hoje, durante a manhã, a Baixa de
Coimbra foi invadida por cerca de uma dúzia de pessoas, homens e mulheres de
todas as idades, com coletes encarnados, pertencentes à Igreja Universal do Reino de Deus,
a distribuírem gratuitamente um jornal e um pequeno folheto –este era composto
com várias imagens, uma de figura de homem novo a jogar num casino, um braço a
injectar-se com uma seringa, outra com um copo com álcool e um cigarro preso a
uma mão e outro a ver pornografia na Internet. Curiosamente, todas as fotos eram masculinas, o que, por exclusão de partes, nos leva a supor que o pecado
mora ao lado do homem. Neste mesmo folheto podia ler-se: “DOSE FORTE –Tem algum
vício? Conhece alguém que seja dependente de algo que, AOS POUCOS, ESTÁ A MATÁ-LO?
Então, esta oportunidade é para si!!”
O Jornal, em formato A4, com 22 páginas, tinha por logótipo “EU ERA ASSIM”. A primeira folha era composta
de uma ementa variada de desgraças onde se podia ler: “Vida dedicada ao crime”; “Uma
voz dizia para me suicidar”. E, em grande plano e com foto de um homem de
meia-idade, em título: “Fui viciado, suicida e sem-abrigo. Em subtítulo: “morador
de rua, Edilson dormia sobre cartão, tentou suicídio duas vezes, era agressivo
e tinha alucinações.”
Ao longo de 24 páginas é uma
manta de calamidades descritas na primeira pessoa. Ora então, depois desta
apresentação, o que é que eu quero dizer com isto? Terei algum apriorismo
contra a Igreja do Reino de Deus? Não, não tenho. Nem contra esta nem outra
qualquer, salvo se o descaramento ultrapassar em muito a minha parvoíce. É que
se assim for, sendo eu mediano no pensamento, significa que o despudor é
atentatório à nossa capacidade de inteligência.
Sem entrar em grandes conceitos filosóficos
de apreciação, as religiões existem porque constituem e são uma necessidade imanente
ao homem –este, enquanto ser frágil, inacabado, e cheio de incertezas, precisa
de acreditar em algo que o transcenda. Alguém, uma identidade suprema, que
alimente a sua esperança e lhe dê forças para continuar a caminhar em direcção
a um destino, cujo fim é certo e anunciado por todos, é do seu conhecimento,
mas não sabe quando termina. Ao desconhecer o derradeiro, obsessivamente
procura uma realização na acção contínua e sem ter nem levar em conta a sua
finitude –já tive um caso em que internado num hospital, muito doente, um meu
amigo me pedia para lhe vender uma casa. No dia seguinte morreu. É este
aparente desligamento com a realidade efémera da vida que torna o homem um Ser
fantástico, como se tendo conhecimento das suas balizas em limite, apesar disso,
ande constantemente perdido no universo. E é precisamente nesta tendencial projecção
para o eterno que as religiões são o “re ligar” entre a possibilidade de todas
as probabilidades terrenas e o milagre do impossível. É neste procurar o
caminho tendo apenas o horizonte como meta, nesta busca incessante dividida pela
ambição e satisfação do desejo, e, em limite, pelo anseio intrínseco da perfeição
–extrínseco no querer atingir o reconhecimento-, o complemento para a sua
incompletude, que as religiões, na sua sabedoria visando o antropológico,
ocupam um lugar fundamental no mundo ocidental e oriental. No fundo, no seu
pragmatismo filosófico, são a presumível resposta –sem nunca o conseguirem ser-
para as suas inquietações.
Voltando ao caso específico,
desta invasão de hoje na Baixa, destes mensageiros da salvação, está de ver que
a actualidade, neste sistema em que estamos inseridos e a assistir, está aberta
a todos os desmandos. E isto porquê? Porque o Estado, nos últimos anos, ao
encerrar vários institutos de apoio à droga e à toxicodependência, para além de,
numa completa insensibilidade, abandonar à sua sorte milhares e milhares de
cidadãos, escancarou os portões a todos os charlatães e vendedores de mezinhas –é
evidente que isto não é nada de novo. É nas crises profundas das sociedades que
a crendice e a superstição crescem.
Onde é que começa e acaba a responsabilidade
social do Estado perante os seus filhos? Não tem nenhuma? Por um lado,
continuamos cada vez mais a ver morrer pessoas, toxicodependentes e outros, em
prédios abandonados e, por outro, com tendência a aumentar, vamos assistir impávidos
a este espectáculo degradante de, em mensagens de falsos profectas bíblicos,
apenas interessados no lucro fácil deste filão de ouro que são as adicções
desta sociedade hodierna? Talvez valha a pena pensar nisto.
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