"Antonio Luis, como vai?
Sou Emiliana Carvalho, amiga e parceira de projetos de Marcos Cesário. Ele me falou sobre você, sobre sua loja e me sugeriu que fizesse uma entrevista contigo. A princípio estou lhe enviando estas 6 perguntas. Caso haja necessidade, assim que obtiver sua resposta, lhe enviarei outras.
Desde já agradeço pela entrevista, pela atenção.
Emiliana"
Sou Emiliana Carvalho, amiga e parceira de projetos de Marcos Cesário. Ele me falou sobre você, sobre sua loja e me sugeriu que fizesse uma entrevista contigo. A princípio estou lhe enviando estas 6 perguntas. Caso haja necessidade, assim que obtiver sua resposta, lhe enviarei outras.
Desde já agradeço pela entrevista, pela atenção.
Emiliana"
ENTREVISTA COM ANTÓNIO LUÍS FERNANDES QUINTANS
P - 1. Há quanto tempo você trabalha com antiguidades? Qual é a história de "O Encanto da Freiria"?
R –
Profissionalmente há 17 anos, que é a idade deste estabelecimento denominado de
“O Encanto da Freiria”. O entrar nesta área, e abrir esta loja, aconteceu por
acaso. Em finais de 1994 vendi um outro estabelecimento de hotelaria, em que trabalhei
durante 12 anos. Ao adquirir este espaço, que na altura era de pronto-a-vestir,
colocou-se-me a questão de abrir, mas com que ramo de negócio? A Baixa, já
nessa altura, tinha em excesso oferta de roupas e sapatos. Como gosto muito de
arte em geral e decoração, considerando que havia poucas casas neste ramo
comercial, apostei tudo em artigos decorativos novos. Como este estabelecimento
é relativamente grande, espaçoso, com cerca de 100 metros quadrados, tendo em
conta a maioria das lojas do centro histórico que são muito pequenas, e ainda tem
uma sobreloja, então, como tinha muitos artigos de velharias e antiguidades, neste
piso superior coloquei lá algumas coisas pessoais, como rádios, gramofones e
outros. Para minha surpresa, reparei, os clientes frequentavam muito
mais o primeiro andar do que o rés-do-chão em que tinha investido uns milhares
de contos, hoje milhares de euros. Foi assim, progressivamente, que fui
passando para as coisas do passado, da memória, e, aos poucos, largando os bens
novos.
P - 2. Quais
artigos você comercializa?
R – Para além de antiguidade e
velharias, procuro ter uma oferta muito variada, desde a grande peça até à mais
ínfima. Como, por exemplo, o prego que já não se fabrica até ao vidro para
candeeiro que está em desaparecimento. Porque gosto muito e, sobretudo, por uma
questão de defesa, no sentido de um maior leque de oferta, tento tocar em
várias áreas, como livros usados, artesanato, pratas, brinquedos antigos,
usados e novos.
P - 3. O que as pessoas mais
procuram em seu antiquário?
R – Como se sabe a Europa, e essencialmente
Portugal, está a viver uma grave crise económica que começou em 2002 e sempre
em crescendo. Actualmente, por consequência, a oferta suplanta em muito a
procura. Como tal, e infelizmente, hoje não há um artigo específico que se venda
mais. Quase sempre, e salvo excepções, as compras neste género de casas são
feitas por impulso. A pessoa vê um objecto que gosta ou tocou a sua memória e,
se o preço lhe convém, adquire-o. Em suma, não posso distinguir nenhum artigo
em primeiro plano.
Aproveitando a oportunidade
gostaria de lhe dizer que este género de negócio –que é diferente de todos os
outros pela singularidade e muito importantes para as cidades-, em face da
crise que se vive, está profundamente ameaçado.
P - 4. Todos os objetos fizeram parte da vida de
alguém, da história de uma família. Como você se sente convivendo com
o passado?
R – Sinto-me muito bem. Quase como se fosse um fiel
depositário de alguém que, em vida, durante o seu tempo de usufruto, conviveu
com aquele objecto –saliento que todos nós somos apenas usufrutuários das
coisas tangíveis e não “dominus”, com toda a sua carga absolutista, como
erradamente se pensa. Ou seja, enquanto estão na nossa posse poderemos dispor
deles mas nunca do seu “espírito” intemporal. Por outras palavras, perante a
sua grandiosidade, nós humanos, somos meros passageiros. Nós desapareceremos e
os bens, cumprindo a sua missão altruísta e cultural, passarão de mão em mão e para
quem os souber estimar.
Por outro lado, quer no meu caso, quer para quem trabalha com
objectos antigos, há sempre uma grande preocupação em recuperar uma qualquer peça, intrinsecamente se for rara, e fazer a sua perpetuação no tempo. Todos
nós sabemos que temos uma responsabilização social na conservação de objectos
que foram parte integrante de usos e costumes de uma época e de um povo –e
quando digo isto, se é certo que se procura sempre a mais-valia associada ao
interesse egoísta, não é menos certo de que, de facto, porque somos pessoas com
uma sensibilidade acima da média, temos uma enorme propensão para a conservação
cultural e, a todo o custo, evitar que se destruam bens que fizeram parte da
memória colectiva ou de alguém, individualmente.
P - 5. Muitos acreditam que os objetos carregam a
energia daqueles que o possuíram. O senhor é uma destas pessoas?
R – É uma boa questão esta que me
coloca. Vou responder a dois níveis, embora acredite que possa cair em
contradição.
Por um lado, tocando a filosofia,
como disse em cima, acredito que os objectos têm um “espirito” de mensageiros
culturais. Na sua génese imaterialista estará logo o amor intenso do seu
criador, do seu construtor. Ao longo da existência do bem, quantos mais
usufrutuários fizerem parte do seu ciclo de vida e mais afecto lhe tivesse sido
dedicado maior será o seu enriquecimento espiritual. É óbvio que não será fácil
chegar a este tratamento de afeição, no entanto, pela boa conservação de um
objecto antigo, por ilação, chegamos lá.
Em consubstanciação, sendo assim,
no meu entender, poderemos inferir que um bem carrega consigo todas as
experiências pessoais anteriores, desde o seu nascimento até ao último suspiro
de destruição. Porém, contrariamente ao que se supõe, esta carga de
pessoalidade é uma mensagem de paz e de benquerença. Qualquer criação humana,
na sua origem, quase sempre, tem acoplada a prática do bem –que será o supremo
ideal da humanidade. Se mais tarde lhe é dado um uso contrário ao seu fim, não
será culpa nem do criador nem do objecto. É certo que este entendimento não é
unânime. Ao longo da história do homem, pela superstição, pelo medo do
desconhecido, sempre se imaginou poderes sobrenaturais em certos objectos de
culto maléfico. Pessoalmente, não acredito na força imanente de qualquer coisa,
os chamados amuletos, quer para o bem quer para o mal. Acredito sim que a fé
que alguém emprega num determinado bem pode, de facto, transformar a sua vida
pessoal.
Em suma, respondendo
objectivamente à sua questão, a meu ver, os objectos carregam de facto uma
energia implícita, mas positiva. Para além disso, esta carga jamais passará
dele, enquanto coisa palpável, e nunca será transmissível ao seu possuidor. A
haver ligação será sempre ao contrário, isto é: o possuidor, tanto quanto maior
for a união afectiva no inconsciente da memória, fará da coisa uma extensão de
si mesmo, muitas vezes sem se aperceber de tal.
P - 6. Estamos na era da
tecnologia, do consumo desenfreado de produtos eletrônicos. Diante
disso, qual é o segredo da sobrevida de uma loja de antiguidades?
R – No meu entender, as lojas de antiguidades e velharias
persistirão no tempo, mesmo em uma época em que se valora o “usar e deitar
fora” e se desvaloriza a história, a memória do povo e a conservação dos
objectos que, como documentos vivos e palpáveis, são marcos assinalados da
própria história. Entendo que continuarão sempre a existir, porque a época que
vivemos, se por um lado é importante por ser de extrema abundância, por outro,
devido à delapidação de recursos naturais, será efémera e estará condenada ao
fracasso. Por outro lado, ainda, estas casas, no fundo, são museus
interactivos, onde, pela acessibilidade, e contrariamente aos museus inertes
que de certo modo têm um frequentador mais erudito e elitista, se pode mexer
nas peças e, subsequentemente, serão sempre procuradas por muitos. Mais ainda,
este género de estabelecimentos, nas suas dinâmicas naturais, corre atrás da
memória e não o contrário. Ou seja, se, como é evidente, a tecnologia
substituiu de vez a mecânica estas casas acompanharão o mesmo fenómeno de
progresso. De tal modo é verdade que as televisões analógicas, os primeiros
computadores e os jogos de consola, o cd, só para dar exemplo, já fazem parte
do espólio destas catedrais populares.
P - 7. António, para finalizar a entrevista: É bom viver do
passado?
R – O homem –literalmente falando-, enquanto sujeito
antropológico de humanidade, é um ser de avanços e recuos. Numa primeira fase,
chamemos-lhe a da conquista, e que durará, mais ou menos, até aos 50 anos de
idade, se necessário for, passará por cima de tudo e todos para atingir o seu
objecto de realização pessoal. É como se perante uma montanha desafiadora
sentisse necessidade de provar a si mesmo e aos outros de que é capaz de
atingir o cume. Acima de tudo o que interessa é apenas a vitória e sem pensar
nos custos colaterais. Lutará, destruirá e até matará para o conseguir. Quando
atinge o pico, extenuado, sem forças físicas, começa a pôr em dúvida toda a
motivação que o moveu até aí. Perguntará muitas vezes a si mesmo: quem sou eu?
De onde venho? O que faço aqui?
Talvez porque o seu ponto de observação (mental e
experiencial) lhe permite olhar para trás, dá por si a fazê-lo intensamente. Em
catarse, dá por si a questionar-se se valeu a pena tanto esforço. Num aparente
e incompreensível eterno retorno às origens, começa a sentir um inevitável
desejo de retroceder. Quer olhar nos olhos e cumprimentar todos aqueles por
quem passou velozmente nessa sua vida que agora considera estapafúrdia e louca.
É tomado de um indeclinável arrependimento e, para o expurgar, sente um íntimo
desejo de, com o seu saber e tudo o que estiver ao seu alcance, contribuir para
o bem comum. Se puder, criará uma fundação ou, no mínimo, contribuirá e fará
parte de uma associação de voluntários para ajudar o próximo.
Depois desta viagem pela filosofia analítica, respondendo
objectivamente à sua pergunta, embora seja de dupla interpretação, por um lado,
digo-lhe que ninguém vive apenas do passado. Como escrevi em cima, a nossa
existência é uma convergência em resultado de várias circunstâncias, uma
majoração de experiências, uma tentativa de aperfeiçoamento contínuo que nunca
será concluída. O passado será sempre a alavancagem para o futuro –considerando
que o presente é um mero estádio virtual. Na nossa vida apenas há passado,
olhando para trás, e futuro, visionando para a frente.
Por outro lado, se a questão tinha a ver com o facto de eu
viver a vender coisas do passado, digo-lhe que gosto, sim. Mas, curiosamente,
sou bipolar: por um sou conservador dos objectos enquanto detentores da
memória, por outro, na minha vida, sou liberal, progressista, e pouco agarrado
a usos e costumes petrificados. Respeito intrinsecamente a dinâmica natural de
tudo o que nos rodeia.
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