É meia-noite de quinta para sexta-feira. No Café Santa Cruz, o senhor Costa, o empregado de mesa e pintor, não tem mãos a medir. Por entre um sorriso simpático, dividido pelos pedidos das muitas dezenas de clientes que ouvem atentamente a belíssima tuna de estudantes que, de sua livre vontade, entenderam actuar neste mítico café da Baixa. Cá fora, na esplanada, não há uma cadeira livre. As pessoas, umas em pé outras sentadas no varandim de pedra que rodeia o espaço, ora conversam em tertúlia ora tentam sintonizar a música do agrupamento universitário.
Uma hora antes, na Praça 8 de
Maio, em frente ao estabelecimento de hotelaria, actuou uma banda de metais e
instrumentos de sopro, provavelmente estrangeira, composta por quase uma
vintena de executantes, que deixou, quem passou por ali, todos de “cara à banda”. Apesar de já passar das
zero horas, seja pela cálida noite de um verão que ainda tarda ou não, esta encantadora
praça e as ruas confluentes apresentam um anormal movimento. Há uma saudável
troca de comunicação entre várias línguas europeias.
A cem metros desta praça, no Salão Brazil, provém
uns sons harmónicos de trompete em estilo livre de improvisação de Jazz. Por
muito surdo que algum passante noctívago seja, é impossível ficar alheio. Por
um lado é o intenso barulho da trompete, intervalado com clarinete, por outro,
o som melódico é extraordinário, a fazer lembrar Neil Amstrong. Só anjos tocam assim.
À entrada deste
salão-restaurante, na pequena esplanada, cerca de uma vintena de pessoas estão em
amena cavaqueira. Numa heterogeneidade de idades, entre o cabelo com rastas, os
vários “entas” e os sexagenários,
todos parecem felizes. Subimos as escadas de acesso ao Salão Brazil. Na
entrada, temos de afastar pessoas, como se nadássemos num oceano humano, para
conseguir mergulhar no interior. A sala está repleta. Numa miscelânea de
melómanos de jazz, com pinceladas de cabelos brancos, “afros-rastados”, bonés na cabeça, e “rabo-de-cavalo”, o ambiente, quase indescritível, à “luz-que-fusca”, faz lembrar New Orleans, por volta de 1920.
Passa cerca de um quarto de hora da
meia-noite. Chega um carro da PSP com três agentes. Entram a “matar”, como quem diz, um pouco
ríspidos, talvez para marcar terreno, para mostrar quem manda, e chamam o
responsável. Tinham recebido queixas de vizinhos por causa do barulho. Alguém
tira uma fotografia. O flash da máquina
alerta os polícias. Um deles reage bruscamente: “se sair a nossa imagem em qualquer jornal, cá estamos. Temos direito à
nossa privacidade”.
Os cerca de trinta degraus de
acesso ao Salão Brazil despejam um homem magro e aparentemente fragilizado. É o
Pedro Rocha Santos que vem falar com os três agentes. Ele é o mentor e o homem
que dá a transpiração e a cara pelo “Jazz
ao Centro”. Nota-se que faz um esforço hercúleo para se conter. Em
arremedos, vai-se explicando. “Tenho
licenças passadas pela Câmara Municipal. É uma realização conjunta com a
autarquia. Esta situação não pode continuar. Estou farto”, desabafa Rocha
Santos. Aos poucos os cívicos, talvez condoídos com este homem, vão perdendo o
ar agressivo inicial e tornam-se mais compreensivos. Ambos, polícia e cidadão
interpelado, começam a desabafar. Diz um dos agentes: “pois é, isto é serviço da Polícia Municipal, mas como é amargo,
chama-nos a nós. Tudo o que é duro é à nossa força que cabe responder”.
Pedro Santos, perante o ar humano que provém dos agentes, aumenta a investida
verbal: “que diabo!, porque não vão os
senhores falar com o presidente da Câmara? Sabem onde mora, não sabem?
Fartei-me de trabalhar para realizar este evento. Eu andei a colar posters
durante a madrugada. Saberão os senhores o trabalho que isto dá? Isto é
frustrante! Isto é de terceiro-mundo. Que diabo, ainda há pouco passou aí a
Queima das Fitas. Foi uma semana de barulho intenso. O que faço é importante ou
não para a cidade? Se não é. Acabe-se com isto. Estou farto. Não aguento mais”,
repete, em desabafo o mentor dos encontros de Jazz, com a complacência dos
agentes da PSP.
Agora sou eu em discurso directo. É preciso
garantir bom-senso de todas as partes envolvidas. Todos têm razão: os
residentes da zona histórica, a polícia envolvida e o Pedro Rocha Santos.
É preciso harmonizar os
interesses. Para os residentes –que têm razão, repito- é preciso interrogar:
querem uma Baixa sem barulho, amorfa, sem pessoas e sujeita a assaltos
nocturnos? Ou, pelo contrário, dando um pouco do seu legítimo direito ao
sossego, querem uma zona histórica rejuvenescida, movimentada, plena de vida,
com gente de todas as idades, em que todos possam andar em segurança?
Para o Jazz ao Centro, tudo o que
fizer, que é em prol da Baixa, deverá ter em conta quem trabalha no dia
seguinte. É preciso apostar na insonorização dos espaços, na sensibilização
residencial. Às vezes, caso-a-caso, uma palavra resolve muita coisa.
Não deveria tomar partido neste
conflito, mas como tenho conhecimento dos suores transpirados e o tamanho
esforço que foi necessário para trazer o jazz para Coimbra, vou mesmo ser
parcial. Por uma questão de honestidade intelectual, coloco-me sem reservas ao
lado de Pedro Rocha Santos –juntamente com outros, por volta do ano de 2000,
entre outras “demarches”, pelo menos
uma vez, acompanhei o presidente do Jazz
de Coimbra a Lisboa ao Hot Club
Portugal. O mérito é todo dele. Pessoalmente, estou-lhe muito grato pelo
que conseguiu concretizar. Claro que, naturalmente, se deve também ao apoio
incondicional de Mário Nunes, Vereador da CMC, apoio que em 2000 foi negado por
Manuel Machado, então presidente da autarquia.
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