sexta-feira, 1 de maio de 2009

NAQUELES DIAS...




Hoje estou em baixo, chateado, deprimido, e sei lá que mais. É naquelas alturas que sentimos cá dentro uma raiva surda. Apetece partir tudo, sobretudo quem abusa de nós, dos outros, em nome de uma determinada tradição, ou do seu estatuto de importância, e querem fazer de nós, daqueles que trabalham, parvos.
Comecei logo ontem de manhã. À conversa com um amigo, dizia-me ele que estava a passar mal porque não lhe pagavam. Um deles, que até citou o nome, e passeia-se de bom carrinho pela cidade, passa a vida a prometer pagar e nada. Digo-lhe eu, porque é que você quando entrega o seu material não pede um cheque, mesmo que seja pré-datado –ainda que não seja criminalizado- pelo menos é um documento de dívida?! Comigo, disse eu, já levei tanta cacetada que não vendo nada sem ao menos me deixarem um cheque. Quando facilito, mesmo as pessoas conhecidas, tenho de fazer uma correria repetida, como devoto para Meca, para receber o dinheiro. É fatal, como o destino.
Passadas umas horas fui visitada por uma cliente já antiga. É uma pessoa óptima, de grande posse financeira, mas se tenho o azar de não receber na hora estou tramado. Uma das vezes que isso aconteceu, para além de deixar de frequentar a loja durante muito tempo, andei meses atrás dela para receber o cheque. E só veio parar às minhas mãos porque pedi a uma vizinha que me telefonasse quando a visse em casa, no intervalo de uma das muitas viagens que faz. Coloquei-me à sua porta e, com simpatia e firmeza, de lá não saí sem o que me era devido. Então ontem, mais uma vez, escolheu várias coisas, que fiquei em levar a sua casa à noite.
À tarde, a Baixa estava inundada de estudantes. A Praça 8 de Maio parecia atapetada com um manto negro. Uns completamente ébrios, outro nem por isso, mas alguns (e algumas) davam um espectáculo gratuito e deprimente. Não quero cair numa de moralista, nada disso. Mas uma pessoa olha para estas fitas e começa a questionar o que é isto? Claro que, para mim, não é novidade, todos os anos é assim aqui em Coimbra. Também é verdade que quase todos os anos escrevo qualquer coisa a embirrar contra esta benevolência tácita que nesta altura da Queima das fitas impera na cidade. Já tenho dúvidas se o mal está realmente nos estudantes ou em mim. Porém, continuo a bater na mesma tecla. Todos os anos, por esta altura de Maio, em nome da tradição, destrói-se pelo puro prazer de destruir, furtam-se coisas com e sem valor apenas pelo prazer da contravenção. Embirro com isto. Pronto! Já disse.
Quando a luz do dia começava a desaparecer, ia a passar à entrada da Rua da Louça e vejo dois estudantes, que não me pareceram embriagados, pegarem num expositor de ferro forjado, que hoje não se fará por menos de 300 euros, pertença de um restaurante indiano, ali à entrada da Rua do Corvo, onde em tempos funcionou o Restaurante FEB, e que reabriram há poucos meses. Por momentos fiquei a vacilar acerca do que deveria fazer. Afinal o expositor nem era meu. Se me metesse com os estudantes, provavelmente daria chatice. Era como se estivesse na prancha de uma piscina. Salto? Não salto? Qualquer um de nós já passou por situações idênticas. É curioso, porque numa fracção de segundos o nosso cérebro, em exame psicanalítico, busca, rebusca e faz uma análise rápida da situação e impele-nos agir ou não agir. É engraçado que o que pendeu para a minha decisão é que eu conheço a família indiana. “Sei”, pressinto, as dificuldades que estão a passar. É a integração num meio de certo modo hostil. Já lá fui comer várias vezes. Tem muito boa cozinha, portuguesa e indiana. E foi isso que me impeliu a ir atrás dos dois estudantes e, como se o expositor fosse meu, retirei-o dos seus braços. E, na cara embasbacada daqueles jumentos vestidos de capa, disse-lhes o que pensava do seu acto criminoso. Tem a sua graça, porque ficaram parados, estarrecidos a olhar para mim, como se eu fosse um ser do outro mundo, e nem uma palavra proferiram. Lá entreguei a obra de ferro forjado no restaurante e disse-lhes para nesta altura não colocarem coisas destas na rua porque facilmente seriam surripiadas. Pelas suas caras, percebi que não entenderam a razão de não poderem ter na rua um instrumento que é fundamental para desenvolver o seu trabalho.
À noite, conforme o combinado, levei a encomenda a casa da minha velha conhecida e cliente. Como tinha estado a ver um quadro e tinha gostado, embora não se decidisse, achei por bem, levar-lho também.
Como sempre faço, entrei, entreguei a encomenda e falei-lhe no quadro que estivera a ver à tarde na loja. “Ah, pois, gosto muito dele, sim. Mas, então, deixe-mo ficar cá em casa, para pedir opinião aos meus filhos. Segunda-feira vou à loja e digo-lhe se fico com o quadro ou não. Se ficar, passo o cheque de tudo junto”.
Cá veio outra vez a análise mental e psicanalítica. Se digo que não, estou linchado –ela vai entender que não confio nela-, se digo que sim, estou cravado para receber. Já sei que durante uns meses não vai aparecer na loja. Que faço então? Naturalmente disse que sim. E lá ficaram mais de um milhar de euros. Até quando? Não sei.
E aqui estou, depois de uma noite mal dormida, a pensar como hei-de descalçar esta bota.
E ainda ontem de manhã dizia eu ao meu amigo que já não caía nestas esparrelas.
Anda para aí muita gente, a aproveitar-se de quem trabalha, que precisava de levar uma marretada. Ai precisava, precisava…

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