sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

UM TEXTO LONGO... MAS VALE A PENA!

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



(RECEBIDO POR E-MAIL 
-OS SUBTÍTULOS SÃO DA MINHA RESPONSABILIDADE)

Introdução ao texto da Cruz Vermelha Internacional

Júlio Marques Mota

"Uma história paralela ao grande texto que foi publicado pela Cruz Vermelha
O quarto artigo da Série Falemos de Economia, Falemos então de Política, é um texto extenso, muito extenso mesmo e trata-se de excertos apenas. De excertos longos, é certo, mas de excertos, de um grande texto, seguramente. Um olhar de ternura e fraternidade sobre toda esta Europa em crise, neste caso, o olhar de milhares e milhares de voluntários a trabalhar para a Cruz Vermelha, voluntários que procuram ajudar os mais atingidos pela crise e com isso a ajudarem-se emocionalmente a si-mesmos mas com o drama de que as vítimas da crise são muitas, são mesmo muitos milhões. O olhar da Cruz Vermelha internacional sobre a Europa em crise. Um relatório que aqui em Portugal mal se ouviu falar. Boicote? Ignorância da nossa imprensa? Incapacidade dos nossos jornalistas estagiários, a menos de 800 euros mensais talvez, em pegarem num texto com esta profundidade? Pressão do poder instituído? Não sei, sei apenas que é um texto que todos nós devemos ler e nele meditar, um texto que é simultaneamente um apelo. Um apelo a que se pense diferente, a que se reaja diferentemente se quisermos sair da crise, um apelo portanto a que se saia do modelo que gerou a crise. Um texto que é simultaneamente uma crítica a tudo o que se tem feito, a convidar-nos a uma profunda reflexão a partir dos factos e das histórias pessoais aqui relatadas.
Um texto a publicar por partes e no fundo por temas, a Introdução em primeiro lugar, e depois por capítulos, pela “descrição” das grandes Tendências que se desenham na Europa e adicionalmente por dois capítulos mais:

1.        Primeira Grande Tendência- A pobreza está a aumentar, e os pobres estão a ficar ainda mais pobres.
2.        Segunda Grande Tendência- Os novos pobres na Europa
3.        Terceira Grande Tendência- Enfraquecimento na saúde – os cortes podem vir a saírem bem caros.
4.        Quarta Grande Tendência- O desemprego: dignidade e desespero.
5.        Aprender a lidar com a Crise
6.        Propostas da Cruz Vermelha Internacional.
Ainda o trabalho de tradução dos textos escolhidos não estava concluído, eis que telefona um grande amigo meu. Precisava de falar comigo. Tudo bem, combinei uma hora e esperei.
Trata-se de alguém que a roleta da crise atirou por terra, como aconteceu a tantos outros de que se fala neste relatório. Jovem na casa dos 30 anos, em tempos, há 4 anos ainda, tinha uma vida farta. Comerciante, gerente de duas empresas que facturavam bem, a mulher gerente igualmente de uma terceira que não facturava mal, era um homem que “fardava” e bem, à grande burguesia da cidade onde cresceu. As grandes marcas internacionais, de homem e senhora passavam-lhe pelos dedos, pelos olhos, pelas idas a exposições e pelas escolhas do seu mapa de vendas. A crise chegou e com uma loja em regime de franchising num dos grandes centros comerciais, tipo Colombo, centros que o capitalismo internacional arranjou para dar cabo do pequeno comércio e depois de o explorar até ao tutano, cuja administração estará no Luxemburgo, em Madrid ou em Amsterdão, com rendas de casa leoninas, negociadas caso a caso e de garantia bancária assegurada por 5 anos, este meu amigo sentiu a crise, sentiu que tinha que rapidamente se desfazer da loja, dos direitos e sobretudo das obrigações que esta acarretava. Inteligente, sentiu nas narinas os ventos terríveis da crise. Passou a firma à multinacional que o fornecia, pois estava em regime de franchising. Acordo? Bom, deixem-me explicar: a multinacional que o fornecia fica-lhe com toda a existência, de resto bancariamente já paga ou de pagamento garantido. A que preço, a preço de custo, certamente. Quando ele me contou este acordo deixei escapar um sorriso amargo. E disparei: quer isso dizer que se uma camisa custa ao cliente 110 euros mais IVA significa que ela te custou 60 euros à entrada da loja. Certo? Certo, respondeu-me. Mas quer isto dizer que a camisa saiu de outro lado, saiu do produtor, que neste caso é agora o comprador. Estás a seguir? Estou, estou, respondeu. Então o preço que te terá sido pago pelo actual comprador foi o custo que lhe saiu enquanto produtor e esse será, por exemplo 40 euros, uma redução de 33% (1/3). É mais ou menos isto, mas porque é que acha que necessariamente tinha que ser assim, pergunta-me com ar espantado. As narinas dilatavam-se-lhe a fazer-.me lembrar o meu cão perdigueiro, de nome foguete, felino que nem o diabo quando sentia a caça. Simples, pela teoria do valor. As mercadorias não têm um valor como essência, dito valor trabalho, têm um valor do mercado, um valor de venda estabelecido na circulação, na venda, mas é um valor do mercado em que se situam os operadores. Ora, neste caso um situa-se na esfera da produção, a multinacional, e o outro na esfera da circulação ou da venda a retalho, o meu amigo. Não há aqui um mercado, mas sim dois e haverá então dois valores diferentes para o mesmo produto. Qual é o preço que domina, qual é o preço que vai prevalecer? Necessariamente o que convém ao operador mais forte. Assimetria de operadores, impõe-se a lei do mais forte. Se fosses vender a existência a um empresário de venda a retalho venderias ao teu preço de custo, mercado em que tu e o teu comprador se situam. Mas neste caso, azar, estás a vender as peças de roupa a quem as produz. Porque é que ele te iria dar 60 euros se as pode produzir a 40? És capaz de me dizer? E assim perdeste por cada camisa já paga 20 euros, dados assim de bandeja à multinacional. Mas há mais acrescenta-me ele. Mais, o quê, questiono eu. Olhe, nas existências com mais de um ano e menos de 2 anos de presença na loja a regra era a mesma mas, depois de ter sido deduzido a margem de 33%, um desconto de saldo . Exemplo, a mesma camisa se com mais de um ano e menos de 2 anos, seria primeiramente avaliada a 60 euros menos 33% deste valor, ou seja avaliada a 40 euros. Achado este valor haveria agora a redução do produtor que por hipótese é de um terço e a camisa seria agora paga ao meu amigo por [40 – 40(1/3)], ou seja aproximadamente 27 euros! E já agora, as mercadorias com mais de dois anos? Que preço te foi imposto? Aí passei-me, uma vez que a resposta foi sibilina: não valeram nada. Entregues pura e simplesmente ao comprador da loja. Nem podia ficar com elas! Bom, no meu tempo de adolescente quando se ia às “putas” dizia-se que íamos ser esfolados como um cabrito. Não há dúvida, foste esfolado que nem um bode, meu Deus. E assim este meu amigo durante 4 a 5 anos esteve a fazer a casa para a multinacional ficar com ela, praticamente oferecida de bandeja, de borla. Um detalhe mais: a loja estava mobilada pela multinacional mas bem facturada a mobília para ser paga com o suor de português. Ninguém a este nível oferece seja o que for e seja a quem for. E com a mobília como foi? Eles não produzem mobília e então como foi? Aqui o meu amigo gaguejou. Bem, sabe, tinha quatro anos, quatro anos de amortizações, estava pois amortizado em 80 % do seu valor de factura, o valor que a multinacional me facturou. Então pagaram-me apenas o valor da instalação menos os 80 % desse valor como amortização, como quebra do valor comercial. Pagaram-te o valor contabilístico, nada mais a dizer. Confirmou-me que assim foi. Dei um salto da cadeira quando me contou, em tempos, esta história. 
Depois, foi a segunda loja, a mais importante, a fechar. Loja que eles tinham comprado e não arrendado, loja que estava garantida ao banco com uma hipoteca. Naturalmente assim, pois a aquisição do espaço tinha sido muito cara, dado que o sítio era muito bom e o espaço muito grande. O ciclo é pouco mais ou menos equivalente com algumas nuances. Mudam de local, para uma loja de renda mais barata: 3000 euros. Esperam arrendar a loja grande que largaram para mudar para esta mais pequena. A loja grande tinha sido comprada com crédito bancário. Apostaram na venda deste activo e pagariam depois à banca, a ficarem ainda com uns bons milhares. Mas o Diabo tinha entrado na vida dele e ele tinha sido lançado na espiral recessiva para a exclusão. Vendida em Maio, o seu comprador fica, por contrato, a pagar arrendamento durante 6 meses até arranjar crédito bancário e pagar a casa. Destes seis meses a comerciante compradora da casa só pagou um mês e ao fim de seis meses devolveu-lhe a casa. Sem lhe dar um cêntimo mais, sequer. Também tinha falido e bem antes de  não ter conseguido arranjar crédito. A contracção do crédito, o credit crunch, típico das crises tinha-lhes estoirado com o negócio. Depois tentaram vender a casa para uma clínica mas já não houve tempo, as mensalidades da hipoteca deixaram de ser pagas e o banco ficou com tudo o que restava.
E na crise, já completamente falidos, ele e a mulher, por causa das garantias recíprocas dadas aos bancos, largam a casa muito boa que tinham comprado com hipoteca e arrendam uma antiga para eles e para os filhos. Entretanto alugam a casa deixada vazia a médicos estrangeiros aqui a fazerem o seu estágio. Dava para pagar a casa alugada e ainda ficam com quase outro tanto. Numa noite de vazio brutal e com a vida afectiva já a rebentar pelas costuras, com a mulher também ela cansada de perder uma vida de “mulher da burguesia local” para andar a distribuir mercearias pelas pequenas lojas deste seu distrito a seiscentos euros por mês e com horário das 9 às 19 horas com uma hora para almoço e carro completamente controlado  por GPS nem ao almoço poderia estar com os filhos como também nem sequer os poderia ir buscar à escola, iam os avós,  numa noite de desolação os corpos falaram mais alto, a linguagem que está para lá de todas as crises, às vezes até mesmo das afectivas, e desse encontro, desse apelo à vida e à reprodução, nasceu nove meses depois uma menina muito bonita, o segundo filho, portanto. Casal a romper-se, casal que a seguir se recoseu e mais um ano assim permaneceu. Mas a crise não passou.
Diremos antes que a crise apertou mais ainda, a espiral tornou-se mais comprida e menos larga, tornando a velocidade da queda ainda maior. O processo de falência é concluído, os bens entregues a um gestor de massa falida e a casa alugada até aí alugada a médicos a fazerem a especialidade fica na posse deste gestor. Os estudantes de medicina, já médicos, desaparecem e o dinheiro que ao meu amigo e mulher tanto jeito lhes fazia, desaparece igualmente. Financeiramente a situação torna-se insuportável. Precisa de saltar, de agarrar a vida num outro lado, onde pensa que a pode apanhar. E foi-se embora.
Num outro continente emprego foi procurar e durante um ano por lá andou a trabalhar. Mas não dava, a instabilidade política de lá e de cá, não dava para que a família se mudasse com armas e bagagens para lá do mar. Regressou, mas falido em Portugal se ganha para lá do salário mínimo é-lhe todo o dinheiro apanhado. Só tem uma saída. Procura-a, um contrato de trabalho em que para lá do salário mínimo, seja todo ele pago por baixo da mesa. Ilegalmente, portanto, livre de impostos. Encontrou-o, numa empresa a criar por um amigo seu. Trabalha intensamente durante quatro meses em que se cria a empresa, em que ele na verdade ficava como gerente, mesmo que no contrato estivesse escrito de servente. Mas a crise muda tudo, até os comportamentos. O seu patrão, seu amigo de anos, ficou portanto com um trabalhador fiel e competente que ele conhecia bem, mas ficava com alguém que podia ser tratado como um imigrante, ilegal, se necessário fosse, pois era essa a garantia que lhe oferecia o contrato. E foi isso mesmo que aconteceu. Ao fim de quatro meses, porque a empresa ainda não tinha começado a trabalhar, começado a ter receitas, recebeu, por conta, 500 euros! E depois dizem-lhe que ou ficas assim, por este ordenado, ou podes ir embora e vai reclamar para a “p. que te pariu”. Foi assim mesmo, um contrato entre amigos estabelecido, um contrato entre inimigos rompido. E entretanto os filhos vão crescendo, o outro lado do mar vai ficando distante, não navegável agora esse oceano, e a precariedade instalou-se e difundiu-se a todos os membros da família. E a consequência lógica, natural, inscrita na ordem da crise, aconteceu, isto é, veio a separação, veio o divórcio. Agora sem casa,  nem barata nem  cara, agora volta para casa dos pais. Está sem nada, o fim de um ciclo, talvez. Assim penso. 

UM PROBLEMA TRANSVERSAL

Aliás o texto da Cruz Vermelha vai no mesmo sentido: “O diretor-geral do Comité Internacional da Cruz Vermelha (ICRC), Yves Daccord, referiu-se a esta situação, de forma semelhante durante um encontro organizado pela Cruz Vermelha finlandesa em Julho de 2013. "A Europa tem um longo registo de manutenção de uma plausível confiança no futuro dos seus jovens, mesmo durante crise económica e social. Nada mais. Com os preços a subirem e com o desemprego a aumentar de forma galopante, os jovens citadinos já não vejam nenhum futuro para si mesmos, e os governos começam a perder a credibilidade e a sua própria legitimidade," disse ele, advertindo que algo de dramático pode acontecer na Europa.
Nós iremos ver algo a acontecer. Não necessariamente uma repetição do que aconteceu algures, onde as pessoas gritaram por liberdade, mas vamos ver alguma coisa. Está já a haver muita pressão dirigida contra os governos."
Fim de um ciclo, penso eu a propósito do meu amigo que quer emigrar mas não sabe sequer para onde, se é que há um onde para onde possa emigrar. Sinceramente duvido que haja. Fim de um ciclo e ele está na parte mais funda do ciclo, como está praticamente quase toda a Europa. Em termos gerais, o director-geral da Cruz vermelha fala no mesmo sentido, creio. A saída da crise não se determina nas ruas é certo, fiquem disso descansados, até o meu amigo Ventura Leite e  todos os que estiveram na conferencia realizada na Culturgest sobre a crise do euro, mas o pontapé de partida necessariamente passará pelas ruas. Passará por serem as ruas a impor as medidas que nos farão sair da crise, com a diferença de que isso terá que acontecer em várias cidades e em vários países ao mesmo tempo, ou pelo menos a começar num dos grandes países da zona euro, disso não tenho dúvidas. Até porque a marcha da História ninguém a pode deter, uma vez criadas as linhas de força que a fazem cavalgar sobre as forças da desumanidade agora instalada. Fim de um ciclo, na parte mais baixa do ciclo, à espera da força da História, do desencadear da sua dinâmica, é isso, o necessário para dessa parte baixa todos nós nos erguermos.
Fim de um ciclo, em que o neoliberalismo tentou destruir o estado Social e veja-se a fúria e o despudor com que o está a fazer, ao que dele ainda resta. Ramaux tem razão quando nos disse na Culturgest:
A grande crise atual tem duas vertentes: a do modelo neoliberal, é o Ato I da crise aberta em 2007; a da Europa, é o Ato II começado em 2010 e que é a crise do próprio euro. A segunda vertente, em parte, deriva da primeira: tendo sido o euro introduzido na base de um modelo liberal, a sua crise exprime a do neoliberalismo em geral. Mas não se reduz à primeira vertente: o euro acrescentou um suplemento ao modelo neoliberal, o qual se acrescenta à crise. É por isso que o Velho Continente é hoje o grande paciente da economia mundial, apesar de a crise ter nascido nos Estados Unidos e ter uma dívida pública, para citar apenas esta vertente, em média menor do que a dos Estados Unidos ou a do Japão.
(…) O modelo neoliberal impõe-se como dominante a partir do final da década de 1970 e com um projeto claro: pôr em causa a grande revolução do Estado Social (ou Estado-Providência). O Estado Social é aqui entendido em sentido lato: não inclui só a proteção social, função à qual é frequentemente reduzido, mas inclui também a regulação das relações de trabalho e de produção (principalmente o direito do trabalho), os serviços públicos e as políticas económicas keynesianas (de rendimentos, orçamental, monetária, industrial, comercial...) de apoio à atividade económica e ao emprego. Com estes quatro pilares, as economias já não poderão ser consideradas, estritamente falando, como sendo economias de mercado, são antes economias mistas com mercado, são economias de iniciativa privada, mas também de intervenção pública. O capital ainda domina, certamente, mas o seu poder é limitado (fiscalidade, direito do trabalho) e segmentos significativos da atividade escapam ao seu controlo e à sua dinâmica (serviços públicos, proteção social). O Estado, porque é um campo específico, não é, decididamente, apenas uma muleta ao serviço do capital contrariamente ao que defende o pensamento marxista. Existe uma mão esquerda do Estado como o reconhecerá tardiamente — e sem chegar a teorizar — Pierre Bourdieu. O capital compreendeu-o perfeitamente: a partir do fim dos anos de 1970 e do início dos anos de 1980, este retoma a ofensiva contra o Estado Social. E é a atacar cada um destes quatro pilares do Estado Social que ele encontra a sua coerência global: reorientação das políticas económicas num sentido liberal, privatização e reorganização sobre um modo mercantil da proteção social e dos serviços públicos, flexibilização do direito do trabalho.2
O resultado desse combate está bem à vista. Como nos assinala o texto que estamos a querer apresentar publicado pela Cruz Vermelha :
“Há cinco anos, teria sido inimaginável; tantos milhões de europeus em filas de espera a pedir alimentos em cozinhas de sopa para os pobres, a receberem pacotes de comida em casa ou a serem indicados como pessoas com direito a compras com enormes descontos (lojas onde eles podem comprar alimentos a preços muito reduzidos após terem sido encaminhados pelas autoridades sociais). Pessoas outrora pertentes à classe média moram agora em reboques, roulottes, em barracas, nas estações do caminho-de-ferro ou nos abrigos para os sem-abrigo, hesitando em ir à Cruz Vermelha e ao Crescente Vermelho ou a outras organizações pedir ajuda.
Quando as pessoas pedem ajuda, é muitas vezes como um último recurso. Elas estão a pedir comida ou medicamentos ou dinheiro para pagar os serviços públicos ou o aluguer de casa para não serem despejadas das suas casas. Milhões são afectadas pela pior crise desde há seis décadas; uma crise que tem visto as pessoas estarem a perder os seus empregos e as casas, e isto quando elas nunca tenham imaginado que alguma vez uma tal situação lhes poderia acontecer; uma crise que fez com que os pobres fiquem ainda mais pobres. 'Crise' era suposto significar dificuldades temporárias, um solavanco na estrada da vida e que iria, em breve, passar. Quem teria imaginado que isso duraria tanto tempo e que iria afectar tantas pessoas e em tão grande profundidade ? Actualmente existem mais de 18 milhões as pessoas que receberam ajuda alimentar financiada pela UE, 43 milhões que não recebem o suficiente para comer todos os dias e 120 milhões em risco de pobreza no conjunto dos países abrangidos pelo Eurostat. E enquanto isso, ainda esperamos que a crise vá acabar em breve, quando para muitos a crise apenas começou. Ou está ainda prestes a começar.”
É tempo de mudança. Seguramente, iremos assistir a mudanças, temos a certeza disso, só não temos a certeza de quando. A dimensão do desastre é tal que só podemos esperar e desejar que seja em breve.

EMIGRAR É A SOLUÇÃO FINAL?

A pensar assim, meio adormecido meio acordado, sonhei afinal a pensar em tudo isto e desperto ao ouvir tocar à campainha. Vou abrir. Era o meu amigo. Sentamo-nos. Convido-o a um café que aceita. Olho-o bem, de lado e sinto (…) sinceramente sinto que nada vai bem, a sua cara está deformada, um ar até febril enche a minha sala, a partir da cara dele.
            Diz-me que quer ir embora, quer ir para fora mas (…) não sabe línguas, ao menos que soubesse francês. Queria saber como é que eu aprendi francês como autodidacta, já lá vão cerca de mais de 50 anos! Diz-me que no centro de Emprego e Formação profissional há cursos de alemão, francês, inglês, mas o curso de francês só abre para Março e ele tem pressa, pressa de se ir embora, precisa de saber se conheço algum programa gratuito com que possa aprender a escrever e falar francês.
E no meio de toda esta ansiedade diz-me: sabe, professor Júlio, estou disposto a tudo. Levanta-se da cadeira, virado para mim inclina-se levemente para a frente, com os braços para a frente e depois virados para traz como quem tem uma criança nos braços, e, de punhos apertados, diz-me com uma força anímica brutal: estou disposto a fazer de tudo, professor Júlio. Fazer de tudo, preciso de trabalhar, preciso de sobreviver para já. Emigrar, trabalhar, aguentar, tenho filhos a alimentar. E mais, quero que eles, um dia,  deste seu pai ainda  se venham ainda a orgulhar. Emigrar, trabalhar, aguentar, eis pois a trilogia dos tempos modernos a substituir aquela que nos alimentou durante uma vida, a de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. A trilogia da Revolução contra a trilogia da submissão, é isso. Hoje, está sem nada. A crise tirou-lhe quase tudo o que tinha, tirou-lhe  a roupa de fora, a multinacional levou-lhe o resto, levou-lhe a roupa de dentro. Nem sequer casa já tem, nem casa nem carro, e está exactamente como muita gente da classe média em Milão, centro financeiro por excelência da Itália, uma das economias mais importantes da zona euro, está sem nada. Só lhe falta dormir na rua, como em Milão o faz muita gente que foi da burguesia!
Mas aquele fazer de tudo fez-me lembrar uma outra história que se passou comigo, fez-me lembrar Faro, a Rua Teresa Ramalho Ortigão ondo morei,  numa tarde de sábado, fez-me lembrar a minha generala, uma mulher russa imigrante em Portugal e que me disse ela?
Passo a citar a crónica escrita de então:
Viro-me para a imigrante russa e pergunto de modo bem delicado: diga-me, profissionalmente como é que tem sido a sua vida?
A forma como a pergunta foi formulada, o termo profissionalmente, bem enquadrado da na pergunta, deu-lhe confiança. É ela que agora me olha com ternura, digamos com confiança e com a sua resposta deixou-me pregado ao chão. Profissionalmente, fiz de tudo. Estamos num país estrangeiro. Ninguém nos conhece, ninguém nos vê, ninguém que seja das nossas gentes para me ver, para me criticar. Sublinha com mudança de tom a palavra, ninguém!
Fiz de tudo. Muitas escadas terão sido lavadas por esta emigrante, muitas escadas terão sido subidas e descidas, com todo o respeito pelas mulheres de limpeza, muitos horários de trabalho terão sido sistematicamente violados.
Fiz de tudo. Muitas estufas de morangos foram apanhadas, muitas caixas foram carregadas.
Fiz de tudo. Muitos campos de feijão-verde foram apanhados, muitas caixas de tomates por ela apanhados foram encaixotados. Muitas noites de sono de má qualidade, muitas dormidas pelos campos abertos certamente, muitas dormidas, na melhor das hipóteses, em quartos de 8 a 10 pessoas, por quarto com a cama sempre quente já como na China, perto da rotunda do Hospital de Faro passadas ou algures e caladas pelo silêncio de toda a gente, inclusive pela ignorância sistematicamente assumida pelas autoridades oficiais responsáveis pelas condições de trabalho de toda a gente.
Fiz de tudo. Algumas noites também por esses mesmos campos ao luar e enrolada poderá ter andado com quem não sabe quem, no quadro de uma torre de Babel de ucranianos, russos, moldavos, e pasme-se, de chineses e chinesas também, com horários de 12 horas a 16 horas talvez. Sobre esta gente, não quer o governo nada saber, sobre esta gente não se pronuncia o Serviço de Fronteiras, sobre esta gente quer o Ministério do Trabalho tudo ignorar, até porque do ponto de vista neoliberal é gente completamente descartável. Como assinalava o antigo ministro Oliveira Baptista, como é que dormem as romenas, por exemplo, da apanha do morango, ninguém sabe, ninguém quer saber. Gente descartável, a lembrar os textos de Kevin Bales, gente a que a Troika, a Comissão Europeia, o BCE, o FMI, os Passos Coelho andam ainda ao assalto, como verdadeiros ladrões, mas não na calada da noite, a lembrar Zé Afonso, mas sim à luz do dia, munidos de um poder que lhe dás o voto que lhes confiámos, a lembrar Marx também, ele que está cada vez mais actual.
Fiz de tudo, é a sua expressão, e nas condições em que fez de tudo, meu Deus, muita gente não fez nada, porque simplesmente neste tipo de trabalho os trabalhadores nacionais com direitos são excluídos pelos patrões e acusados depois pelo CDS e outros de que os portugueses não querem é trabalhar, porque o subsídio de desemprego é elevado. Deslocalização no local, diriam os economistas: já que os terrenos não podem ir ter com os trabalhadores onde eles estão, então que venham os trabalhadores para onde estão os terrenos mas com os níveis salariais dos seus países de origem ou muito pouco mais. Adicionalmente, estes podem aceitar outras condições de trabalho bem mais gravosas, menos custosas para os patrões, até porque ninguém conhecido os vê.
 Fiz de tudo. E com isso foi assim a sua luta pela vida para mais além e mais alguém, a luta pelos seus a tudo exigia. Pela sobrevivência, foi isso, é isso.
E terminava aqui essa crónica. E eis que agora, dois anos depois, alguém me vem dizer que está disposto a fazer de tudo, não aqui, lá fora, onde ninguém está lá para o ver, para o criticar. A história repete-se, terá dito Hegel, terá repetido Marx, mas como drama e depois como tragédia, penso eu.
Tudo isto vem a propósito desta nossa Europa e do texto da Cruz Vermelha. Neste texto da Cruz Vermelha temos ecos da mesma realidade e de um discurso tão sério como a da minha generala, imigrante russa, por acaso encontrada e conhecida numa rua de Faro há dois anos. Com um detalhe importante, a “minha generala” fala dos netos, a Maria Miteva fala à Cruz Vermelha dos seus filhos. Ambas com uma certeza, a de que o futuro deles passava pela educação e formação que lhes conseguissem dar. Ou seja, pensam para eles o contrário do que o governo português, verdadeiro funcionário ao serviço de Bruxelas, está a impor aos nossos filhos em geral.
Com efeito o texto da Cruz Vermelha relata-nos uma situação na Bulgária. Basta transcrever:
“O meu nome é Maria Miteva Tenev-Tropolova e tenho 47 anos de idade . Eu tenho três crianças adultas de um casamento anterior. Eu casei pela segunda vez em 1993 e nós temos quatro crianças, a mais nova nascida em 2011. Tenho trabalhado como uma auxiliar de jardim de infância durante oito anos, mas eu estou actualmente em licenças de parto. Contudo quando eu puder trabalhar, limparei casas desde muito cedo, desde quase de madrugada, de modo que eu possa acabar e levar os meus filhos ao jardim de infância e à escola.
O meu marido trabalha como electricista e trabalha sempre que tenha serviço para fazer, mas nós não podemos viver sem os meus rendimentos extra.
Nós na verdade sentimos a crise durante os dois anos passados com os preços do aluguer da casa, da alimentação e do aquecimento a subiram, a subiram. Nós pagamos mensalmente cerca de 1.000 lev búlgaros (500 euros) pelo nosso aluguer e serviços públicos associados e então não nos fica nada para viver. A Cruz Vermelha búlgara ajudou-nos, e nós estamos-lhe muito gratos à directora de um dos centros sociais, que é uma mulher excepcional. Esta conseguiu arranjar-nos alguma ajuda financeira, mas deu-nos igualmente o apoio moral e psicossocial durante uma época em que o nosso filho mais novo esteve muito doente e nós não tínhamos nenhum dinheiro. Nós realmente precisávamos de alguém para conversar, estávamos a passar por um momento muito difícil.
Ivan, o nosso filho mais novo, tem agora dois anos de idade e está à espera de ir para o infantário. Nicola, que tem cinco anos de idade anda no jardim de infância, Nevena estará no segundo ano da primária e Paul estará na quarta classe no próximo ano. Os nossos filhos mais velhos saíram da Bulgária em 2010, quando a situação se agravou e o desemprego aumentou. Estão agora em Itália e completamente independentes financeiramente. Todos os meus filhos são uns bons filhos – desejados e amados.
Nós, de toda a maneira, lidamos com a situação graças a amigos que nos dão roupas para os nossos filhos e assim por diante, e eu não gosto de me andar a queixar. No entanto, se alguém nos der uma mão, nós provavelmente deixaremos a Bulgária – toda a família, todos nós o faríamos.
É o pior para as crianças. Eu quero-os a ler livros, a fazer desporto e a desenvolverem os seus talentos. Eu não espero muito e eu sei que os dias de festa e descanso são apenas um sonho distante para nós, mas faço por acreditar que não devemos privar as crianças de ler um bom livro. Deve haver mais que fazer na vida do que apenas andar a sobreviver .
Eu ensino os meus filhos a não separar as pessoas de acordo com a raça, religião ou estatutos. Eles devem acreditar no bem e devem ter uma atitude positiva para com todos. Mas é difícil para eles viver entre no meio de outras crianças que não sejam 'socialmente fracas'. Eu tento incutir-lhes auto-confiança e explicar-lhes que mesmo se eles são socialmente fracos , isso não faz com que eles sejam diferentes ou piores que os outros.
Eu realmente gostaria que a Bulgária se tornasse um país melhor para aqui vivermos. Tudo o que precisamos é de boa saúde e de um emprego. Eu quero que os meus filhos sejam educados. Nevena desenha muito bem, ela tem talento. No entanto, não tenho a coragem de pensar sobre o futuro, porque quando eu penso e as coisas não acontecem como espero, fico decepcionada."

ONDE É QUE EU JÁ VI ISTO?

A minha generala mandou os netos para a Rússia, para aprenderem como deve ser. Quer-lhes preparar o futuro, e para isso, é necessário garantir a sua devida formação. Formação cívica e técnica.
Encontramos aqui o mesmo discurso, os filhos mais novos a serem vistos pelo prisma da educação, da formação técnica e cívica, enquanto os mais velhos desta “nossa” búlgara estão em Itália, financeiramente independentes mas sem dinheiro para ajudar os pais e os irmãos, estão como está a mãe dos netos da minha generala russa, sem dinheiro, na Rússia. Se alguém lhes dar uma mãozinha, uma ajuda financeira diríamos, vão todos embora, como o meu amigo se quer agora ir embora também, se lhe derem a mãozinha de que ele precisa. E todos, numa Europa que temos, se querem ir embora para uma Europa que não temos, e vão para uma Europa afinal onde andam milhões a querer ir embora, de um lado e do outro, é só gente a somar, gente que não está bem, que quer ir fazer de tudo, concorrentes uns contra os outros, gente que basicamente só quer ir embora. A lembrar Francis Coppola e Apocalipse Now, onde o oficial americano já não estava bem em lado nenhum, nem nos Estados Unidos, nem no Vietname. O exemplo de que se fala no texto da Cruz Vermelha a propósito de Itália, onde os não-italianos são mal vistos, é disto um bom exemplo. Para onde ir, afinal? Para onde deve o meu amigo emigrar para as linhas da vida voltar a encontrar? Face ao que se passa na Europa, esta é uma pergunta a que não sei responder. Como se assinala no texto da Cruz Vermelha:
“Tendo de enfrentar o impacto da crise económica, muitos europeus estão actualmente a serem deixados para trás; inactivos, desempregados, dependentes, excluídos e sem quaisquer recursos”, sem nada, ou ainda:
“Como uma organização, estamos empenhados em ajudar as pessoas quer nas situações imediatas, as de curto prazo, quer nas situações de longo prazo, e estamos continuamente a rever como é que nos podemos ajustar e adaptar a nossa assistência às necessidades novas e emergentes, continuando ainda a ajudar aqueles que já estavam em necessidade antes da crise.
Ao mesmo tempo, vemos o perigo de se transformarem milhões de pessoas em destinatários passivos da ajuda; estamos empenhados em desempenhar um papel na prevenção desse fenómeno e estamos a envolver pessoas mais activamente na procura de soluções para esta situação.
Para fazer isso, em primeiro lugar precisamos de pensar de forma diferente – e então devemos actuar de forma diferente. Há uma necessidade para todos nós em examinarmos se as nossas sociedades estão adaptadas para resolver a situação presente ou então como é que nos podemos ajustar face à necessidade de implementar novas iniciativas, para implementar novas intervenções preventivas ou ainda para alcançar uma melhor cooperação assim como para criar novas abordagens, mais flexíveis e holísticas. (…)
Afim de agir de forma diferente devemos então e primeiro que tudo pensar de forma diferente. Obter melhor compreensão de como é que os indivíduos, famílias, sociedade civil e instituições se podem adaptar às realidades de hoje e reforçar a sua resiliência é uma necessidade de partida. O Governo nacional e local, as grandes empresas, incluindo o sector bancário, os cidadãos e as organizações humanitárias devem pensar em formas inovadoras para encontrar soluções viáveis, sustentáveis e de longo prazo, para se mitigarem os impactos humanitários desta crise económica.”
Se assim não for, se assim não fizermos, manter-se-á a mesma trajectória de desgraça escolhida pelas Instituições Europeias e como se assinala no texto que temos vindo a citar:
“Enquanto outros continentes com sucesso reduzem a pobreza, a Europa [com sucesso] aumenta-a.”
É de tudo isto que nos fala o texto da Cruz Vermelha cuja leitura recomendamos e garantidamente o meu amigo passa por todo ele. Seguramente verdade."


Júlio Marques Mota

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