(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Quem escreve, mais que certo, já passou por isto: ter a
noção que o mundo continua a girar, mas não haver nada que mereça ser tema de
crónica -pelo menos até engatilhar o primeiro parágrafo, a seguir, como uma
fonte a jorrar seiva do interior da terra, sai tudo e mais alguma coisa em
catadupa. Quando estamos neste estádio de apatia, é como se, aparentemente, a
natureza tornasse tudo estático, queda e leda, e as coisas e as gentes se
tornassem cinzentas sobre acção de um manto de neblina caído do Céu.
Hoje, de manhã, na minha rua, desocupada
de pessoas, só duas vozes ecoavam por entre os prédios estreitos e devolutos.
Uma, a do ceguinho, “uma moeda, por amor de Deus, Senhor!”; e outra, a de uma
romena, com a mais antiga cartilha da agricultura apontada a quem calcorreava as
pedras da calçada, a comer as sílabas,
numa voz entaramelada e a soletrar: “o Bordágua”.
Os poucos transeuntes que passam,
de mãos nos bolsos e bem agasalhados pelo frio –porque, contrariamente ao
aforismo, o Sol quando se estende não é para todos- olham de soslaio para as
montras. Poucos param, como se temessem serem acometidos pelo desejo de comprar.
Faltam 23 dias para o Natal e nada faz crer que estejamos tão próximos deste
dia festivo. Presente-se uma sensação estranha de vazio, algo triste e
desalentado, como se alguém tivesse furtado a alma desta tão importante quadra
para a paz no mundo. Falta a magia, o espírito que em outros anos, sem se apanhar
pelos dedos, se apreendia em cada sujeito que se cruzava connosco. Mesmo sem o toque,
consegue auscultar-se um sofrimento, uma angústia em cada rosto que se olha. Em
cada face, de olhos baços e sem brilho, parece emergir uma pergunta: “o que vai
ser de mim? Como vai ser o meu amanhã?”.
É certo que nas últimas décadas
esta época perdeu toda a ligação que tinha com o amor, a fraternidade, o
encontro com a família, e foi transformada numa temporada de corrida às compras,
mas, apesar desse exagero, a verdade é que a vida continuava. De repente, como
se nos faltasse o chão, demo-nos conta que estávamos nas lonas, não havia
dinheiro para o essencial, para pagar a electricidade e a água, as telecomunicações,
os transportes, quanto mais para o acessório, e estendemo-nos ao comprido.
A grande distribuição mundial,
através da publicidade massiva e a ocupar todo o nosso espaço visual, inculcou
no inconsciente colectivo de que só é possível ser feliz se for consumidor. Em
silogismo, logo quem não compra, por falta de meios, será um infeliz –é
evidente que o conceito de felicidade não é assim tão linear e não será sentido
por todos da mesma maneira.
Quem não gasta por não ter dinheiro
não existe; é um zero, um nada, um não-inscrito
no universo da mercantilização. Pela sua manifesta carência será desprezado e corrido
como um pária infestado por moléstia. Já se for um abastado, muito rico, um forreta
que não gasta um cêntimo para além do necessário, será venerado como se todos
esperem que, num qualquer dia, a sua bolsa se abrirá para uma qualquer causa
solidária.
Como se perseguisse um sonho impossível
de eternidade, construiu-se este sistema económico assente no pressuposto de
que era possível continuar a produzir com custos cada vez mais baratos. Para
isso não se olhou a meios e recorreu-se ao esclavagismo no Oriente. Para um consumidor
obsessivamente apenas preocupado com o seu interesse, em busca do pagamento
mais baixo, ergueram-se cidades de grandes arranha-céus consumistas. Ao mesmo
tempo, a conta-gotas, o fisco foi retirando em impostos e taxas o rendimento
marginal que permitia pequenas veleidades e faziam movimentar o pequeno
comércio.
No Ocidente passou a aplicar-se uma
austeridade cega de modo a gerar um desemprego incontrolável, que no limite leva
à desvalorização do trabalho, e coloca cada vez mais os assalariados, sobretudo
os mais novos, nas garras das grandes empresas –como o método impessoal de
martirização pelo telefone do “cal-center”
já estará esgotado, estamos a assistir hoje a uma verdadeira horda de jovens a
tentarem vender pacotes de
telecomunicações. Dada a necessidade destes desempregados, recorrem a todo o
género de argumentação para conseguirem os seus intentos. O processo de
angariação de novos clientes é simplesmente preocupante e odioso. Como se
não chegasse e a provar que no melhor pano cai a nódoa, ao que parece, num
escândalo sem precedentes de usar e abusar, até as grandes instituições de recolha de donativos
estão a pagar para manter um exército de desempregados nas ruas das cidades a
solicitar o óbolo.
Por sua vez, os pequenos proprietários, e
comerciantes, asfixiados pelas suas finanças depauperadas, ficam à mercê do
capitalista que tiver dinheiro. Este, como se acenasse com as notas numa mão, é
o novo ditador destes tempos hodiernos e as coisas, como gelo flagelado pelo
calor, vão-se desvalorizando a pontos de não valerem nada. Apesar dos discursos
contrários de recuperação económica, entrámos numa espiral de deflação da qual
não se vê o fim e cujas consequências se conjecturam de falências em massa.
Como se já não se adivinhasse,
ficamos a saber hoje que a Europa está a usar os mesmos métodos do Oriente para
a escravatura na produção industrial –até aqui sabia-se que estava a ser
utilizada na agricultura intensiva. E nós, consumidores que somos todos, o que
fazemos para além de assobiar para o lado?
Depois de tanto desfiar de amarguras,
resta uma pergunta: Será que, num andar para trás no tempo, voltámos ao
princípio da história? Porventura, será que o mundo, de uma forma maniqueísta,
está dividido em duas classes: escravos e dominus?
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