(Imagem da Web)
Neste 20 de Dezembro o autocarro
parou junto ao rio Mondego. Estava o Sol no centro de um dia friorento à sombra.
Do meio da pequena multidão uma mulher esguia e de meia-idade saiu em passo
ligeiro mas resoluto. Era baixa, com pouco mais de metro e meio. Era
incrivelmente magra, muito magra, como se a gordura numa qualquer reivindicação
se negasse a encher o corpo. Vestia com simplicidade roupas que, de tanto serem
repetidas, pareciam querer manifestar-se pelo excesso de uso. Quem olhasse
aquele rosto fechado de frente veria dois olhos negros, embaciados de tristeza
mas, ao mesmo tempo, um olhar duro, petrificado pela mágoa, como se o pouco e o
muito já não fizessem qualquer diferença, se tivessem imunizados à dor, e
estivessem prontos a levar qualquer pancada do destino.
Como fantasma perdido nas trevas em
busca de um encosto que lhe consubstanciasse afirmação, atravessou a avenida quase
sem dar pelos carros e, no seu andar rápido, entre o suave vacilar de pena e o
carregar os pés no chão de dentes cerrados, entrou nas ruas largas da calçada.
A sua mente estava longe, cavalgava sobre um corcel de memórias. As pessoas que
consigo se cruzavam sem as ver com definição, aos seus olhos, pareciam sombras
que se moviam em câmara lenta. Nem a música espalhada ao vento de “O Natal existe” a fez hesitar em calcar
as pedras quase com raiva. A letra da canção parecia gozar com a sua disposição
“quero ver você não chorar, não olhar
para trás nem se arrepender do que faz”. Pensou para si, “não chorar como? Só se fosse pelo motivo da
fonte das lágrimas ter secado”. Sentiu-se invadida por uma irritação surda.
Se não fosse por coisas, apetecia-lhe mandar um grito para o ar acompanhado de uma
grande asneira. “Que merda de tempo este
que se vive agora no Natal! Anda tudo lixado, com a alma mais negra que a
chaminé da casa de aldeia onde nasci, e tudo finge que é feliz. Esta época
natalícia faz-me lembrar o período pré-eleitoral em que anda tudo a cantar
hossanas ao candidato. Passado um mês desaparece a nuvem de euforia, vem a
solidão e a falta de expectativa, e regressa a realidade que sempre esteve no
meio de nós e nos há-de acompanhar até ao fim dos nossos dias. Nunca gostei
muito do Natal. Nesta quadra sou assolada por memórias que de boa vontade
expurgava. Casei próximo de Dezembro. Rodou o calendário e quando pari os meus
filhos andavam S. José e Maria à procura de um estábulo indecente para
parecerem os mais segregados desta vida simbólica de pobreza. Também nesta época,
estava o solstício de Inverno a preparar-se para polvilhar tudo de branco, foi
quando a minha mãe morreu –que saudades que eu tenho dela!
Faz tantos anos que dei o sim lá na igreja da Rainha Santa –tantos, tantos!
Quantos? Sei lá! Até já me esqueci. Tantas esperanças que coloquei naquele ramo
de camélias amarelas! Era o tempo das flores. Quando casei ainda se apanhava no
ar o cheiro dos cravos. Agora o cravo feneceu, já só resta a memória e o
espírito revolucionário num livro que tenho lá em casa e nos móveis que ainda
mantenho e não pude trocar por outros mais modernos. Do cravo passámos a
escravo. Mas, agora que penso nisso, somos subjugados a quê? E Porquê? E Eu? Sou
submissa a quem? Se calhar do destino, deste fado de má-sorte. Sempre trabalhei
tanto, tanto, até agora para eles! Para todos! Para a minha família! Nunca
cuidei de mim. Não soube pugnar pelos meus interesses. Há décadas que não vou
ao cinema! Há séculos que não vou dançar. E quando foram as últimas férias que gozei
fora? Estive sempre em segundo lugar. A primeira escolha era deles. Eu apanhei
sempre o que restava, o que não lhes interessava. Porque é que este meu filho
me havia de fazer isto? Deus queira que ele se safe! Tive mesmo azar! Anda uma
pessoa a criá-los para isto! Porque é que ele me fez isto? –E olhos
começaram a humedecer. Ao longo destas
décadas, tanta escada que encerei! Tanta casa que arrumei! Tanta roupa que
passei a ferro em casa das senhoras! Tanta merda que eu limpei depois de sair
da repartição pública em segundo trabalho forçado e até às tantas. Porque é que
ele me fez isto? O que eu sofri para pagar as propinas lá na Faculdade de
Economia e não o consegui ver licenciado. Mas ele é tão inteligente! Como é que
os mais espertos, tendo um talento inato, se transformam nos mais burrões?
Porque é que o meu filho me fez isto?”
Quase sem dar pela distância, chegou à Praça 8
de Maio e entrou na Igreja de Santa Cruz.
II
Transpôs a porta do templo e foi banhada pela
atmosfera fria da pedra secular, onde o silêncio envolvente convida à
introspecção, ao remanso da essência, e a oração surge sem ser requisitada. Havia
um cheiro a Natal misturado em odores de incenso e vela queimada. Algumas mulheres,
com ar solene, de cabeça baixa, em sinal de respeito total, encaminhavam-se
para um dos lados, presumivelmente onde estaria representada a Sagrada Família
e com o Menino Jesus.
Como um saco de águas rebentadas
para dar à luz, as lágrimas irromperam por aquela face martirizada pelo tempo e
o sossego como testemunha. Num dos muitos bancos de madeira corridos, acomodou-se,
deu um último olhar para o púlpito reluzente a ouro enegrecido pelos anos e
fumo de velas, marcas de fé num derradeiro milagre, e cerrou os olhos. O pranto,
como fio de água provindo das profundezas da terra, continuava a correr pela
pele sulcada de bainhas madrastas. Como um condenado à morte, em que lhe resta apenas
uns minutos de vida e só um milagre a pode salvar, ajoelhou e mentalmente
encetou um monólogo emudecido: “Senhor,
ajuda o meu filho! Sabes que nunca Te pedi nada para mim. Dá-me uma mostra de
que és bom. Bem sei que não fui boa mãe ao dar-lhe tudo de mão-beijada. Pensei
que estava a fazer o melhor. Enquanto eu trabalhava pela noite dentro, correndo
de Seca para Meca, contando os cêntimos, ele moinava. Quando eu me levantava de
madrugada para deixar o seu almoço prontinho em cima do fogão chegava ele meio
borracho e com outras coisas mais que o alucinavam. Eu via mas não queria ver
nem crer. Tive sempre esperança que ele mudasse. Ele é bom menino, Senhor!
Tenho a certeza. É certo que é muito manipulador e, fazendo que ouvia, nunca
escutava ninguém. É muito inteligente, mas pouco disciplinado. Talvez seja este
o verdadeiro problema. Nunca tive mão na sua vontade. Às vezes irritava-me com
ele mas quando se abraçava a mim, naquele gesto apertado, acabava a derreter-me
e estragava tudo. Sempre foi diferente do irmão, o outro meu filho que está lá
longe do outro lado da fronteira. Ajuda o meu filho, Senhor! Dá-lhe uma outra
oportunidade. Apesar dos seus quase 35 anos continua a ser uma criança
crescida. Bem sei que contribuí para ele ser assim. Eu sei! Mas tem dó! Ele é
um fruto desta sociedade conspurcada pelo vício, onde a necessidade de
abstracção implica a recorrência a ansiolíticos, a álcool, a droga, como ele.
Foi por esta que o meu filho, em associação com outros, começou a assaltar
pessoas na cidade. E eu sem saber de nada! Levei um baque, Senhor! Quando a polícia
me bateu à porta para o levar sob prisão fiquei em choque. Como foi possível?
Como foi possível ter-me feito uma coisa
destas?
Daqui a meia-hora vai ser lida a sentença no Tribunal. Pela Tua
incomensurável misericórdia, neste Natal de 2013, ajuda o meu filho! Pelo Teu
omnipotente poder de influência sobre a humanidade, prepondera a juíza. Faz com
que ela tenha compaixão e lhe dê uma oportunidade de reinserção social. Fazes
isso, Senhor?”
III
A sala fria do Tribunal estava repleta. O
ambiente era de tensão, emoção e expectativa. Sabe-se lá o que iria na cabeça
de todos aqueles familiares?! Dentro de momentos, pela leitura da sentença
proferida pela juíza presidente do colectivo, iria ser decidida a vida, o
futuro daqueles três jovens. A súmula de crimes cometidos pelos arguidos contra
a comunidade ficou ali bem vincada e esclarecido que causaram temor social,
como tal iriam ser castigados. E foi lido o acórdão na parte decisória que mais
interessava. E num caso nunca visto a magistrada chorou. De entre os presentes,
uma mulher suspirou fundo e olhou para cima. O seu menino tinha sido condenado
a pena suspensa.
(BASEADO NUMA HISTÓRIA REAL)
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