LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo os textos "OS ESCRAVOS E O DOMINUS"; e "REFLEXÃO: A MALDIÇÃO DO PRESIDENTE"
(Imagem da Web)
OS ESCRAVOS E O DOMINUS
Quem escreve, mais que certo, já passou por isto: ter a
noção que o mundo continua a girar, mas não haver nada que mereça ser tema de
crónica -pelo menos até engatilhar o primeiro parágrafo, a seguir, como uma
fonte a jorrar seiva do interior da terra, sai tudo e mais alguma coisa em
catadupa. Quando estamos neste estádio de apatia, é como se, aparentemente, a
natureza tornasse tudo estático, ficasse queda e leda, e as coisas e as gentes
se tornassem cinzentas sobre ação de um manto de neblina caído do Céu.
Num destes dias, de manhã, na
minha rua, desocupada de pessoas, só duas vozes ecoavam por entre os prédios
estreitos e devolutos. Uma, a do ceguinho, “uma moeda, por amor de Deus,
Senhor!”; e outra, a de uma romena, com a mais antiga cartilha da agricultura
apontada a quem calcorreava as pedras da calçada, a comer as sílabas, numa voz entaramelada e a soletrar: “o Bordágua”.
Os poucos transeuntes que passavam,
de mãos nos bolsos e bem agasalhados pelo frio –porque, contrariamente ao
aforismo, o Sol quando nasce pode até ser para todos mas quando se estende é só
para quem o procura- olham de soslaio para as montras. Poucos param, como se
temessem serem acometidos pelo desejo de comprar. Faltam 23 dias para o Natal e
nada faz crer que estejamos tão próximos deste dia festivo. Presente-se uma
sensação estranha de vazio, algo triste e desalentado, como se alguém tivesse
furtado a alma desta tão importante quadra para a paz no mundo. Falta a magia,
o espírito que em outros anos, sem se apanhar pelos dedos, se apreendia em cada
sujeito que se cruzava connosco. Mesmo sem o toque, consegue auscultar-se um
sofrimento, uma angústia em cada rosto que se olha. Em cada face, de olhos
baços e sem brilho, parece emergir uma pergunta: “o que vai ser de mim? Como vai ser o meu amanhã?”.
É certo que nas últimas décadas
esta época perdeu toda a ligação que tinha com o amor, a fraternidade, o
encontro com a família, e foi transformada numa temporada de corrida às compras,
mas, apesar desse exagero, a verdade é que a vida continuava. De repente, como
se nos faltasse o chão, demo-nos conta que estávamos nas lonas, não havia
dinheiro para o essencial, para pagar a eletricidade e a água, as telecomunicações,
os transportes, quanto mais para o acessório, e estendemo-nos ao comprido.
A grande distribuição mundial,
através da publicidade massiva e a ocupar todo o nosso espaço visual, inculcou
no inconsciente coletivo de que só é possível ser feliz se for consumidor. Em
silogismo, logo quem não compra, por falta de meios, será um infeliz –é
evidente que o conceito de felicidade não é assim tão linear e não será sentido
por todos da mesma maneira.
Quem não gasta por não ter dinheiro
não existe; é um zero, um nada, um não-inscrito no universo da mercantilização.
Pela sua manifesta carência será desprezado e corrido como um pária infestado
por moléstia. Já se for um abastado, muito rico, um forreta que não gasta um
cêntimo para além do necessário, será venerado como se todos esperem que, num
qualquer dia, a sua bolsa se abrirá para uma qualquer causa solidária.
Como se perseguisse um sonho impossível
de eternidade, construiu-se este sistema económico assente no pressuposto de
que era possível continuar a produzir com custos cada vez mais baratos. Para
isso não se olhou a meios e recorreu-se ao esclavagismo no Oriente. Para um
consumidor obsessivamente apenas preocupado com o seu interesse, em busca do
pagamento mais baixo, ergueram-se cidades de grandes arranha-céus consumistas.
Ao mesmo tempo, a conta-gotas, o fisco foi retirando em impostos e taxas o
rendimento marginal que permitia pequenas veleidades e faziam movimentar o
pequeno comércio.
No Ocidente passou a aplicar-se
uma austeridade cega de modo a gerar um desemprego incontrolável, que no limite
leva à desvalorização do trabalho, e coloca cada vez mais os assalariados,
sobretudo os mais novos, nas garras das grandes empresas –como o método impessoal
de martirização pelo telefone do “cal-center”
já estará esgotado, estamos a assistir hoje a uma verdadeira horda de jovens a
tentarem vender pacotes de
telecomunicações. Dada a necessidade destes desempregados, recorrem a todo o
género de argumentação para conseguirem os seus intentos. O processo de
angariação de novos clientes é simplesmente preocupante e odioso. Como se não
chegasse e a provar que no melhor pano cai a nódoa, ao que parece, num
escândalo sem precedentes de usar e abusar, até as grandes instituições de
recolha de donativos estão a pagar para manter um exército de desempregados nas
ruas das cidades a solicitar o óbolo.
Por sua vez, os pequenos proprietários, e
comerciantes, asfixiados pelas suas finanças depauperadas, ficam à mercê do
capitalista que tiver dinheiro. Este, como se acenasse com as notas numa mão, é
o novo ditador destes tempos hodiernos e as coisas, como gelo flagelado pelo
calor, vão-se desvalorizando a pontos de não valerem nada. Apesar dos discursos
contrários de recuperação económica, entrámos numa espiral de deflação da qual
não se vê o fim e cujas consequências se conjeturam de falências em massa.
Como se já não se adivinhasse,
ficamos a saber agora que a Europa está a usar os mesmos métodos do Oriente
para a escravatura na produção industrial –até aqui sabia-se que estava a ser
utilizada na agricultura intensiva. E nós, consumidores que somos todos, o que
fazemos para além de assobiar para o lado?
Depois de tanto desfiar de
amarguras, resta uma pergunta: Será que, num andar para trás no tempo, voltámos
ao princípio da história? Porventura, será que o mundo, de uma forma maniqueísta,
está dividido em duas classes: escravos e dominus?
(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
REFLEXÃO: A MALDIÇÃO DO PRESIDENTE
Quando, em 2001, Carlos Encarnação, sucedendo
a Manuel Machado, foi empossado presidente da Câmara Municipal de Coimbra, tinha
na sua secretária três projetos em fase avançada de aprovação: Fórum Coimbra, Retail Park de Eiras e o Dolce
Vita. Pelos comerciantes da Baixa, como estigma, este ex-ocupante da
cadeira do poder local ficará para sempre ligado à destruição do comércio
tradicional da cidade. Agora, como recebendo a mesma mácula, Machado recebe o
IKEA de prenda pelo antecessor, Barbosa de Melo, para colocar a sua assinatura.
Tal como Encarnação nunca se questionou nos efeitos arrasadores que a sua
decisão teve para centenas de famílias que fazem da compra e venda o seu modo
de vida, também o novo presidente recém-eleito –que já tinha licenciado a Makro
e o Continente em 1993- “assumiu que o município está empenhado em acolher bem,
do ponto de vista urbanístico, estético e empresarial empreendimentos geradores
de emprego e riqueza. É uma iniciativa relevante para a cidade” –in Diário de
Coimbra, 21NOV2012. Para os comerciantes que vão ser obrigados a encerrar nem
uma palavra de conforto. É dar o dito por não dito, inépcia, ou
insensibilidade?
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