Duas marteladas acabaram há pouco de ser desferidas na
torre sineira da Igreja de Santa Cruz, na Baixa de Coimbra. As Ruas Eduardo
Coelho e do Corvo estão desertas. Um frio incomodativo quebra a paisagem árida,
a fazer lembrar uma inóspita terra arenosa do Norte de África. O Silêncio é envolvente
entre o sim e o talvez não. O emudecimento impõe o seu manto na
carência de pessoas, mas é quebrado pela música ambiente de uma guitarra que,
em trinado sofredor, parece chorar de dor. Passados minutos do meu olhar perscrutador,
uma mulher de meia-idade, com um cão pela trela, atravessa a via estreita. Na Rua
da Louça quatro pessoas rompem o marasmo reinante. Na Praça 8 de Maio o homem
das castanhas, curvado sobre a motoreta, como falcão à espera de uma presa,
parece questionar-se do motivo de, à frente dos seus olhos, os carrinhos eléctricos,
gratuitos, destinados às crianças se encontrarem parados e sem clientela. Nas
ruas largas da calçada pouca gente investe sobre a pedra dura. No Largo da
Portagem, com o Sol a beijar quem passa, as esplanadas dos cafés estão bem
compostas. Na Praça do Comércio, com o astro-rei a incidir a pique, as
esplanadas dos restaurantes a Taberninha
e Praça Velha estão bem compostas com
turistas e a funcionar bem.
Em todo este percurso cerca de
dezena e meia de lojas estão abertas. A maioria, destes estabelecimentos que
parecem despertar para a esperança de fazerem uns trocos, só agora, a meio da
tarde, está a abrir portas. Timidamente os transeuntes, como pombos a
sobrevoarem um campo de trigo, começam a invadir o espaço citadino. De mãos nos
bolsos, entram nas lojas e, como se pedissem desculpa por não poderem comprar,
interrogam: “posso ver?”. Depois, como menino acabado de nascer e surpreso pelo
mundo novo, mexem, remexem, e, depois de uma volta pelo pequeno espaço comercial
e prontos a transpor a porta de saída, levantam a mão, acenando, despedem-se
com uma frase repetida e idiomática: “parabéns!
Tem uma loja muito bonita! Muita coragem! Feliz Natal, que não devo voltar à
Baixa tão depressa!”. Outros, infelizmente menos, a discutirem o preço
taco-a-taco, como se tratasse de uma batalha campal corpo-a-corpo, lá adquirem
uma peça ou outra baratinha. Sempre acompanhada com “sabe, isto está muito mau! E ainda vai ficar pior! Tenho mesmo de
discutir o preço. Saberá lá o senhor o que me cortaram na minha reforma?”
MAS SERÁ QUE AINDA
MEXE?
Nas últimas duas semanas quatro
estabelecimentos reabriram portas nesta parte velha da cidade. Um, na Praça do
Comércio, ao lado da Igreja de São Bartolomeu, com chocolates; outro, na Rua do
Almoxarife, que voltou ao seu dono como loja alimentar e artigos regionais; mais outro, um
restaurante na Rua do Corvo; e outro ainda no Largo da Fornalhinha, uma casa de
pasto encerrada há cerca de um ano. Por mais incrível que pareça, ou talvez
não, apesar da crise profunda que se vive, a Baixa está em constante mudança.
Para fugir ao desemprego e em busca de uma luz nesta escuridão comercial e
industrial todos tentam a sua sorte, o que é positivo, porque, espera-se, será desta
dinâmica que, como fénix a ressurgir das cinzas, sairá a recuperação de todo o
seu tecido comunitário –daqui a explicação para o facto anunciado na imprensa
de que Portugal é o país com maior índice de contrariar o desemprego. Porém há
uma questão que subjaz neste recobramento da ocupação. Todos estes novos
empregos são precários e, na maior parte dos casos, a sua durabilidade é de
escassos seis meses. E por quê? Por que a Baixa sofre de duas metástases
incuráveis: a desertificação e a quebra de poder de compra –este factor é
transversal ao país. Já escrevi muito mas vou repetir, salvo poucas excepções, todos
os novos investimentos na hotelaria que se fizerem aqui têm os dias contados.
Pouquíssimos estabelecimentos hoteleiros se aguentam a laborar apenas até às
19h00 –e o problema maior é que depois desta hora, incluindo sábados e
domingos, não há pessoas. Para piorar, e ainda para provocar mais desânimo, a
iluminação pública apenas acende às 17h30. Na meia hora anterior as ruas, com
as montras apagadas, metem medo ao susto.
Repito, é preciso salientar que
os encerramentos acontecem essencialmente pela falta de pessoas e fraco poder
de compra –pela quebra de rendimentos das famílias. É mais que certo que a
causa maior, sobretudo do desvio de compradores, tenha a ver directamente com
os centros comerciais. Que contribuíram para a secagem desta outrora zona nobre, isso não há dúvida.
MAS E QUE REMÉDIO?
O que fazer para revitalizar a
Baixa? Há dias, em conversa com um amigo, que detém assento na autarquia, e
acerca de um texto que escrevi n’O Despertar, interrogava-me ele: “mas o que se
pode fazer de imediato para acudir aos comerciantes em dificuldade? O que se
pode fazer para tentar salvar a Baixa?”. A verdade é que fiquei sem resposta. O
que lhe respondi foi: não sei! Acho que esta zona já chegou a um tal ponto de calamidade
que já não há vacina que lhe valha. Tal como o país, vai demorar muitos anos a
recuperar. A incógnita é saber quem consegue lá chegar. Como terra inóspita e
com fruição própria, nunca se olhou para o seu futuro. Durante anos e anos foi
abandonada à sua sorte e agora, em metáfora, é como um tapete desfiado com
linhas que perderam o entrelaçamento. Foram políticas assassinas nos regimes de
Arrendamento Urbano durante largas décadas –que agora, a toda a pressa, se
tenta emendar provocando mais feridas sociais. Foram políticas cegas no
licenciamento das grandes áreas comerciais –que continuam, visando somente uma
economia fictícia de cidade ideal e cosmopolita, e esquecendo que a sua base
histórica, enquanto urbe comercial, assenta numa economia de escala entre famílias
com baixo poder de compra. Esta raça
de políticos, egoístas e vendo unicamente o seu próprio interesse, que nos têm
governado nos últimos tempos, visando apenas os fins e sem levarem em conta os
meios, parece que intencionalmente provocaram o empobrecimento e o estertor de
sofrimento nos que já tiveram uma vida digna e agora arrastam-se pela amargura
de uma pobreza envergonhada.
CASA SEM PÃO
A Baixa está transformada numa casa onde não há pão e todos ralham sem
razão. Ainda ontem, Sábado, se realizou uma feira de artesanato na Praça do
Comércio, da responsabilidade da autarquia, e que ocupou todo o largo
ancestral. Um comerciante, indignado, veio ter comigo e comentou incomodado o
facto de nesta altura, em que todos os lojistas com despesas fixas se desunham
para vender alguma coisa, se realizar um certame deste género onde se vende um
pouco de tudo, desde perfumes a lãs. Há duas verdades a extrair. A primeira é
que, a meu ver, esta alegoria deveria ser realizada ao Domingo, para não
colidir com a concorrência aos lojistas e também para tentar movimentar esta
zona no Dia do Senhor que é sempre vazia de gente. A segunda premissa, e esta quase
que anula a primeira, é que os expositores de trabalhos manuais, salvo casos pontuais, não venderam
nada –estive lá e falei com eles.
VAI TUDO A EITO?
Não admira que o Diário de Notícias de hoje refira
que “O número de empresas em dificuldades
não para de aumentar. Até ao passado mês de novembro mais de oito mil foram
obrigadas a fechar. O número de insolvências cresceu 13,4%, o correspondente a
8.119 casos. Ou seja, por dia, 35 empresas fecham portas.”
Vamos todos continuar de braços cruzados, à
espera que Deus nos ajude, sem nada fazer para contrariar o actual
situacionismo?
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