Hoje, seriam para aí dez e pouco, vinha eu escanzorrado, assim sorrateiro, pela Rua
Ferreira Borges a olhar para o chão -assim com uma vontade louca de apanhar uma
notita perdida. Ai senhor, que saudade! Como o dinheiro anda tão contadinho nem
um cêntimo os transeuntes deixam cair. Fosca-se! Foi então quando comecei a
ouvir um escarcéu do camano. Parei logo, que jornalista –salvo seja, é claro- é
como um polícia, um advogado, um médico, um juiz, está sempre de serviço.
Comecei a olhar, a olhar e, carago, não via nada. De repente até se me
assolapou a tola. Querem ver que agora até já invento coisas?! Eu sei lá! Uma
pessoa quando está à porta da velhice começa a ficar estranho, a imaginar coisas, a largar tudo. É como se fosse um
tributo a pagar para entrar no reino da sabedoria. Tudo o que for supérfluo e
colida com a paz interior tem de ficar de fora. Começa a diminuir a visão; o
olfacto já não reage nem ao perfume da menina Ernestina, que é mais intenso que
os odores de uma porcaria; é a audição que se vai e só passamos a ouvir o que
interessa; são os cabelos a caírem da cabeça e a saírem pelo nariz e pelas
sobrancelhas, que crescem que parecem doidos; em nós homens, é aquela coisa que
sempre teve dupla função e agora só serve mesmo para mijar e, pior, como se estivesse mal com a vida entra em depressão
e só tem olhos para o chão.
Dizia eu então, porque numa esquizofrenia de
velho já estava noutra onda, que ia a passar na Rua Ferreira Borges e ouvi uma
grande discussão. Não via nada –o que também não é admirar-, mas disse cá para
os meus botões, tem calma, Toino, se
ouviste qualquer coisa, é melhor aprumares-te e ver o que é. Não desistas rapaz!
E continuei a olhar em redor. Estava mesmo em frente ao Museu Municipal do
Chiado. Mas, fogo, será que tinha sonhado? Do meu lado direito, dentro da
montra estava a família forsyte, como
quem diz, o presépio de Cabral Antunes –que mais parece uma família carenciada,
mais pobre que as pedras da calçada, que nada tem e mesmo assim tudo lhe tentam
tirar. Que anda sempre de trouxa às costas e a levar pancada de toda a gente que
manda ordens. Por não haver dinheiro para uma operação aos membros esta
rapaziada crescida como gente esteve largos anos a viver num armazém camarário.
Foi preciso vir o seu criador, Cabral Antunes, em espírito a uma reunião do executivo
municipal atentar o então presidente Carlos Encarnação para o presépio ir para
uma morada mais digna. Segundo se especulou na altura, parece que Encarnação,
que é um tipo danado para negociação, disse para o mestre: “ajudas-me nesta questão do Metro Ligeiro de
Superfície, que me dá muito jeito para eu me aguentar na cadeira uma dezena de
anos e ter a certeza de que o meu filho tem o futuro garantido e eu, para além
de mandar colocar umas próteses nos membros da tua segunda família de projecto,
pago também um lifting para o rosto da Maria, que está velha, c’mó caraças –cá para
nós, que ninguém nos ouve, também poderias ter feito uma mulher mais linda,
caraças! E se aceitares a minha proposta, ainda te faço mais: mando fazer um
casebre de luxo, em palha, aqui em frente à Câmara, ponho lá todo o agregado a
morar no Natal, incluindo os animais, e coloco lá o Carlitos “popó” a velar
pela sua segurança.”
Em 2003,
presumivelmente, teria sido chamado Victor Eliseu, um dos maiores e últimos cirurgiões
barristas da cidade para operar a prole e dar-lhe um ar da sua graça. Juntamente
com o burro e a vaca, a família subiu à sala de operações, ali próximo do
Hospital dos Covões, e ficou nova de recauchutamento.
É mais que certo que, como as imagens eram tão feiinhas graças a Deus, o operador
teve de pedir ajuda a todos os Santos e demorou um ano a fazer alguma coisa de
jeito.
O presépio foi intervencionado e,
salvo erro, em 2004 –que por mera coincidência estava em vésperas de eleições- foi
exposto no lado de fora da autarquia com toda a magia da quadra que se vivia e
conforme o combinado entre os dois mestres das artes –um dos barros e gessos e
outro da política.
Segundo rezam as crónicas da altura, logo em
2005, ano de pleito eleitoral, dando o acordo por realizado e como favas
contadas, Encarnação, com grande pompa e circunstância, mostrou à cidade o
início dos trabalhos, na abertura do canal junto à Loja do Cidadão, para a
futura avenida e passagem do “tram-tram”
–é de supor que, perante tanta euforia, o espírito de Cabral Antunes não teria
gostado de tanto entusiasmo assolapado e, tratando de lhe colar um encosto, começou
logo ali a engendrar um plano para sabotar as ambições desmesuradas de
Encarnação.
Como sempre em Dezembro, o presépio era
mostrado à cidade ali ao lado da Igreja de Santa Cruz. Mas o espírito de Cabral
não dormia. Assim naquela coisa, foi instigando patifarias todos os anos
subsequentes. Umas vezes eram as moedas que desapareciam, outras vezes desconhecidos
davam nas trombas, salvo seja, do São
José e lá ficavam as mazelas. Os jornais davam eco aos lamentos do então
malogrado vereador da cultura Mário Nunes sobre os atentados e lembrava-se que
a 2ª Esquadra estava a vinte metros. Claro que ninguém estranhava porque, na mesma altura, o edifício policial também tinha sido assaltado. Somos um país
onde o ser ladrão é assim uma segunda profissão. Neste campo somos muito profícuos,
trabalhadores incansáveis, tanto roubamos coisa grande como um frasquito de
perfume na grande superfície. Aliás, diz o povo e com razão, quem não rouba não pode ser boa rês!
Como é lógico, não se fez nada. No mínimo deveriam
ter instaurado um processo disciplinar ao Carlitos
“popó” por falta de aplicação profissional na segurança de pessoas e bens. Mas
nem isto fizeram!
Era de prever que as retaliações
do espírito iriam endurecer. Em 2008, numa acção sem precedentes e da qual a
Polícia Judiciária não caçou o criminoso –porque da PSP nem se fala-, um
qualquer pedófilo coimbrinha abalou com o Menino Jesus e nem a caminha onde
estava deitado deixou. Está bem de ver se ele fosse inglês, não ficaria pedra
sobre pedra até ele aparecer. Alguém por cá ligou ao choro de sua mãe, Nossa
Senhora? Népia! Em face de tal escandaleira, em furto aparentemente nunca
descoberto, o burro ficou mais burro e a vaca cada vez mais vaca. Quase a procurar
a provocação, o executivo camarário substituiu o anterior menino por um bebé-proveta
que, sem ofensa, sofria da Síndrome de Dawn e não tinha aquele ar angélico que
a gente gosta. Resultado, o Antunes -em espírito, está de ver- ficou pior que
possesso. Considerou o acto como pirataria e violador dos direitos autorais e
rompeu de vez com a ajuda que deveria ter prestado para influenciar os governos
a implantarem o Metro Ligeiro de Superfície em Coimbra.
Em face deste volte-face
Encarnação começou logo a fazer contas de cabeça e tratou de passar a pasta a outro.
Aquela mina já não dava nada. Nem Metro, nem comboio, nem carroça. Estava seca, pura e simplesmente. O presépio ainda marcou presença em 2009 no mesmo local mas,
mais uma vez, uns energúmenos –republicanos, está de ver- partiram um braço a
um dos Reis Magos.
Definitivamente, em 2010 a
família mais pobreta e conhecida cá da freguesia assentou morada dentro da
edilidade, no átrio, para ver se encostada à presidência salvava a pele e, de
mão estendida, caía qualquer coisinha –no modelo de pobrezinho em toda a sua
pujança, está de ver.
MAS, AFINAL, O QUE É QUE SE PASSA?
Escrevia eu no princípio do texto –não sei se
ainda se lembram- que ouvi uma barulheira dos diabos na Rua Ferreira Borges.
Então o que era? Pergunta você. Um momento que já explico. Faça o favor de não
ter pressa. Ainda faltam uns dias para a consoada. Olhei para a montra do Museu
do Chiado, onde este ano foi instalado o presépio de Cabral Antunes, e as
figuras estavam todas numa discussão danada. Isto porquê? Porque, embora com
dificuldade lá consegui entender, espetaram com o Baltazar lá para trás dos outros.
Da rua nem se vê sombra. O São José, de mão no peito, só dizia: “tenham calma, por amor de Deus! Olhem que
me acordam o menino!”. Mas o mais afoito era o negro Baltazar que gritava a
plenos pulmões: “isto é racismo, porra! É
discriminação! É segregação! Andam para aí a rebolar-se com encómios ao Mandela
e a mim fazem-me isto? Eu que já sofri tanto para aqui chegar? Já levei com um
Encarnação; já levei com um Barbosa; e agora apanho com um Machado?”
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