Não sei
por quê –ou talvez saiba-, os velhos caem na minha loja como mosca na sopa.
Gosto de ouvir as suas histórias. Em projecção, é como se, neles, eu me revisse
de aqui a uma vintena de anos, certamente se por cá ainda andar, já de bengala
e arqueado sobre o peso das minhas memórias. Como tenho este bichinho da
escrita, é a ouvir as suas compridas narrações que vou buscar o suco para
muitas das minhas crónicas. Por muito simples que pareça não é fácil ouvir os
velhos. Em muitos casos eles não têm ninguém que os ouçam e possam conversar. Sei
isso porque já falei com muitos idosos. Já escutei imensos desabafos pungidos
de dor e com muitas lágrimas à mistura. E já sei que qualquer um que se me
dirija, por muito ocupado que esteja, tenho de tirar um bocado para ele. Pode
até parecer que estou a tentar dar uma de
bonzinho, mas não é nada disso. É
assim um respeito grande que sai cá de dentro, como se estivesse a reviver
alguns que por aqui passaram e me deixaram boas recordações. Vem-me à memória o
velho Hébil, o Pinho, ambos pintores, o Fausto, o Luís, o Plácido, o Fernando e
outros. Os velhos são como o Natal. Durante o mês de Dezembro o seu espírito
estará presente todos os dias, até que passa a data e ausenta-se. Durante anos,
meses, semanas um velhote, porque se lhe dermos atenção, nos sente como
ancoradouro e visita-nos amiúde. Subitamente, sem se despedir, desaparece para
não mais voltar. Umas vezes porque foi institucionalizado num lar, outras vezes,
e aqui na maioria, porque morreu. Nos primeiros tempos temos um sentimento de
perda, depois paulatinamente vai desaparecendo também porque outros virão
ocupar o seu lugar deixado vago.
Dizia eu, e repito, que não é fácil
aturar velhotes. Quase sempre são pessoas com feitios muito difíceis de aguentar,
muitas vezes ruins de coração duro como pedras e insensíveis à partilha, e, por
isso mesmo, as suas famílias se descartam deles. São muito egoístas e chegam a
ser cínicos. Pouco flexíveis, raramente aceitam pontos de vista alheios. Por
este motivo, quase sempre, estão isolados e sozinhos. Já numa idade avançada,
os idosos tornam-se crianças crescidas, sempre a pedir atenção. Perdem a noção
de tempo e o espaço que ocupam na vida do outro que o ouve. Às vezes é muito difícil
descolar de uma conversa. As narrativas surgem-lhe em catadupa, encadeadas umas
nas outras. Tão depressa estão na infância como, logo a seguir, recentemente, há
uns anos, e sempre sem intervalo para descansar. Já me tem acontecido dizer que
tenho de ir tratar de um assunto para quebrar a cadeia de exposições. Para conseguir
os meus intentos, tenho mesmo de sair, fechar a porta, dar uma volta ao
quarteirão e voltar. Só assim é possível interromper o ciclo. Actualmente sou
ouvinte de dois anciãos, um homem e uma mulher, com quem converso. Rondam os 85
anos de idade. Ultimamente o homem, para minha pouca sorte, visita-me
dia-sim-dia-não. Até tremo quando o vejo entrar. Já sei que, no mínimo, duas
horas do meu tempo vão à vida. Também é verdade que o poderia despachar com
alguma subtileza mas começo a embalar-me nos pormenores e pimba! Estou tramado!
Já conheço quase toda a sua vida. Um drama familiar dos grandes. Esse é o
problema! Daí eu ir escutando como se estivesse transformado num viciado.
Embora de contornos
diferenciados, na mulher é notória a mesma falta de afecto e a necessidade de conversar sofregamente. Já há mais de um ano que, no meio de muitas lágrimas e
choros entediados, lhe deu para insistir que tenho de lhe fazer o funeral.
Quando me visita, como hoje, lá vem o tema à ribalta: “não esqueça que tem de
me fazer o funeral!”. Nunca me pergunta como vou pagar. E eu, tentando
despachar a coisa, lá vou dizendo que devemos falar de vida e não de morte. Mas
de pouco vale, a lembrança continua. Hoje, para meu espanto e não pude deixar
de largar uma gargalhada, disse-me que gostava de ir na última viagem num
caixão de cerejeira. Aqui já tive mesmo de lhe perguntar quem ia pagar?
Financeiramente, não posso com uma gata pelo rabo, argui. Mas a velhinha, como
se eu quisesse transmitir o contrário, ou fosse surda, lá continuava na mesma
lengalenga: “não se esqueça que tem de me fazer o funeral!”
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