quarta-feira, 16 de junho de 2010

O CONTO DA SEMANA...

(IMAGEM DA WEB)






VAGABUNDO DE NÓS


Chamo-me João, Jonas para os amigos…prazer! Certamente você conhece-me. Estou certo de que já se cruzou comigo por aí, pelas ruas e vielas estreitas da cidade. Sou um vagabundo…por isso não sei se você já me olhou, nem que fosse de soslaio. Olhos nos olhos tenho a certeza que não. Mas deixe lá, já há muito que me habituei a ser eu a olhar os outros e nunca ser olhado como gente. Também não fique preocupado se, ao escrever, pareço transparecer algum sofrimento e dor. Nada disso! Já ultrapassei esse estádio de alma há carradas de anos.
A rua, a minha rua, porque é nela que vivo, embrutece-nos os sentimentos. Com o tempo, com o passar dos dias, que para mim são sempre iguais, vai desaparecendo aquela coisa a que muitos chamam de sensibilidade. Mas, vendo bem, aí do seu lado, afinal para que preciso eu de sensibilidade? Limito-me a viver sem grandes necessidades. Sou livre. Eu, sem amarras de espécie alguma, gozo em pleno a minha liberdade. Acho graça porque às vezes, em conversas que ouço, quando estou sentado ou a dormitar no banco de pedra, as pessoas falam em liberdade. Juro que, interiormente, me farto de rir. Aquela gente sabe lá o que é ser livre? Como é que alguém pode ter liberdade com facturas para pagar de água, luz, telefones, Internet, eu sei lá que mais, rendas de casa ou prestação para o banco, porque compraram casa, impostos? A vida que vocês levam é de loucos! Alguém pode ser feliz assim? Feliz sou eu que não me preocupo nada com o dia de amanhã.
Eu vivo um dia de cada vez. De vez em quando, quando me apetece, vou ajudar ali aquela casa que vende fruta, não sei se está ver. Os donos já estão velhotes e, como não podem fazer grande esforço, de tempos a tempos, lá vou. Lá me dão um ou dois euros. São uns somíticos do “caraças”, mas eu também não me importo. O dinheiro para mim não conta nada. É apenas uma moeda. Anda esta gente a trabalhar como escravos por causa do dinheiro. Uns não dormem porque não o têm para satisfazerem compromissos, outros, com muito dinheiro no banco, vivem apertadinhos porque têm medo que isto entre numa bancarrota. Eu seja ceguinho se eu não gozo o panorama em camarote de luxo. Quer dizer, é uma maneira de falar, vivo bem com a minha despreocupação.
E agora com esta crise que anda por aí? Ui! Ai minha Nossa Senhora dos Aflitos. Ainda há bocado andei a dar uma volta aí pelas ruas de comércio. Até me deu pena aquele velhote de uma sapataria ali na esquina. Estava à porta, aparentemente a olhar quem passava, mas só mesmo aparentemente, porque na verdade, pelo olhar perdido no vazio, ele não se prendia em ninguém. Parece-me estar a vê-lo, coitado, de ombros descaídos, pescoço enterrado pelas costas abaixo, era a personificação da tristeza solitária. Aquilo não era um homem, era uma andorinha de asas caídas perante o desespero de ver o seu ninho, com os seus filhos, destruído.
Ninguém sabe que leio a vida destas pessoas como num livro aberto. Sou assim uma espécie de Joe Stassio, um personagem dos policiais de Ross Payne. Não sei se conhecem, se calhar não. Este autor português chamava-se Roussado Pinto. Já morreu há muitos anos. Quando era novo, antes de vir para a rua, devorei todos os seus livros. Escrevia como ninguém. Assim com aquela secura…não sei se me entendem. A gente ao ler parecia que estava lá. Era como se, através da leitura se pudesse ouvir a aragem do vento, o chilrear dos pássaros, a tristeza que ia no coração das personagens.
 Por vezes chego a pensar que sou a projecção do Joe Stassio, inventado pelo Ross Payne. Palavra que dou por mim a pensar “queres ver que o cabrão fez de mim a materialização do vagabundo?”. Não. Acho que são mesmo maluquices minhas. Mas as semelhanças são tão evidentes. Vivo na rua, não gosto de compromissos. Trabalho quando me apetece –salvo seja, se posso apelidar uns biscates assim, de trabalho. Quando tenho necessidade de ter uma mulher é que é pior –sim, porque uma pessoa até pode passar fome, sede, ter necessidade de um bom banho, mas sem tudo isso passa. Agora sem uma mulher não é possível. Não é só a necessidade de sexo que está em causa –também é, eu sei!- é sobretudo o sentir o carinho, a afeição nos nossos braços, mesmo que sintamos que quem nos embrulha finge. Um homem precisa deste acto simbólico de amor. Talvez por isso já se entende por que é vemos tantos velhinhos, quase a arrastarem-se, irem atrás da Malú, para a pensão, ali na rua do poeta trabalhador. O velhote vai com ela pela necessidade de sexo? Não, claro que não. É como diria Freud, a necessidade de dominar o sexo fraco, que já há muito deixou de o ser, mas a carência mental para o macho mantêm-se.
É certo que ás vezes passo uns apertos de barriga, mas, na hora, há sempre alguém que desenrasca uma moeda, um bolo, um pão, uma sopa. No geral as pessoas são muito generosas. Têm medo da pobreza, sabe? Eu, e outros como eu, sou a personificação do medo. Olham para mim, para o meu aspecto de vadio, é claro, e pensam lá com eles: “e se eu um dia vou ter de chegar a isto?”. E é aí que se desencadeia o conflito. Eu quase que nem preciso de fazer um gesto. É claro que não acontece com todos, mas sobretudo com os que estão mais vulneráveis por motivos vários. Eu conheço-os de ginjeira. E é nesses, quando preciso, que aposto.
A experiência faz de nós autênticos psicólogos. Você pode não acreditar mas, para ter uma ideia de uma pessoa, basta-me olhar para ela, para a forma como se veste. Sobretudo para os seus olhos. Então se começa a falar comigo, vendo cada mexer de mãos, o contrair da fronte, o semi-cerrar dos lábios. Ainda há dias, estou a lembrar-me, estava à porta da Igreja de Santa Cruz –não sei se já me viram lá…quase de certeza que sim-, aí a uns vinte metros, vi aproximar-se uma cota de cinquenta e picos, toda vestida de negro. Mentalmente, parece que se me acendeu uma luz na cabeça: “Jonas, está aí a tua reforma da semana!”.
Deixei-a aproximar mais, e, mirando-a profundamente nos seus olhos escuros embaciados pela solidão, comecei com a minha ladainha de SOS para situações de emergência: “senhora, ajude este pobre desgraçado, que já não como há três dias. Tenho fome…se…nh…ora –aqui já com a voz arrastada, assim como se estivesse nas últimas, estão a ver? E deixei-me cair a seus pés inanimado. Eu sempre achei que deveria ir para o teatro. Tenho mesmo habilidade, a sério! Só queria que vissem. Acariciou-me logo a cara –parece que ainda sinto o aveludado macio das suas mãos no rosto-, e lamentava: “ai coitadinho! Esta vida é muito injusta para os pobres. Como é que Deus permite uma coisa destas?! É claro que eu, num acto cénico indescritível, comecei a voltar a mim. Claro que com ela a abraçar-me fiquei mesmo curado de todas as doenças até de algumas constipações que só viria a ter no Inverno seguinte. Foi então que, com as minhas pálpebras semi-cerradas de tanto esforço a fingir, vi-a a abrir a carteira e tirar aquela notinha alaranjada de cinquenta euros.
Mais uma vez, como personagem de Juracy Camargo, soletrei: “Que Deus lhe pague!”

2 comentários:

lusibero disse...

Luís Fernandes: há gente capaz de tudo. Mas este seu longo conto tem a sua razão de ser, se pensarmos na solidariedade que tudo quanto é gente, por aí proclama , e no fim se não são os pobres a ajudarem-se...Nunca se viu tanta hipocrisia e tanta falta de humanismo. Isto, só para tirar o riso que o papel do narrador provoca...
BEIJO de
LUSIBERO

LUIS FERNANDES disse...

Obrigada, Mª Elisa, pelo comentário.
A propósito, muitos parabéns pela sua crónica, sempre actual e acutilante, no Jornal da Mealhada. Li com muito prazer.
Abraço e obrigada.