segunda-feira, 14 de junho de 2010

AS FOGUEIRAS DO ROMAL VISTAS PELO "OLHO DE LINCE"




 Era Sábado à tardinha. O tempo estava ameno e agradável. O Sol, lentamente, como quem faz alpinismo, parecia subir à torre da Igreja de São Bartolomeu em espasmos de dor, como se sentisse pena de se despedir do largo mais encantador da Baixa de Coimbra.
 As cerca de vinte mesas espalhadas pela praceta começaram a ser ocupadas. O cheiro a sardinha assada era inebriante. Por cima, como figurantes a dançar ao vento, as bandeirinhas multicolores, esticadas em arames, iam dar ao pequeno coreto de madeira construído para o efeito. Os instrumentos musicais do grupo de baile “Arpa e Dança” jaziam à espera e na expectativa de lhes serem arrancados sons melódicos.
 O presidente da junta de São Bartolomeu, Carlos Clemente, como general a inspeccionar as tropas, ia lançando umas “pestanadas” para ver se estava tudo nos “eixos” e para que nada faltasse ao ambiente de festa popular.
Cerca das 21 horas, praticamente já não havia um lugar vago e muito menos uma mesa vazia. Começando no canto esquerdo, poderia ver-se o Victor, um conhecido empresário de hotelaria, com a família a atacar na broa e na sardinha. Mais ao lado estava eu, mas, aqui para o caso, não conto. Um pouco mais para a direita está o Patrocínio, aquele gajo que costuma andar por aí, não sei se estão a ver, é polidor de esquinas ali no Largo das Ameias.
Um pouco mais para o meio, estava a Floribela, junta com a sua mais que tudo, a Eunice. Naquela mesa de enleio não eram precisas palavras. Os seus olhos, como embrulhados num intenso maremoto, entrando uns nos outros, pareciam partir-se todos em luta virtual de amor. De vez em quando a Eunice passava a sua mão rechonchuda, assim para o aveludado, por cima dos dedos da Floribela. Estas carícias eram intervaladas com mais um copo do carrascão despejado da “picheira” de barro. À medida que o sol se esvaía no horizonte, em sentido inverso, os olhos destas amadas iam ganhando mais brilho e cor. Aos poucos estavam a desinibir-se. A Eunice, como felina em tempo de cio, revolvia-se toda na cadeira. Sempre que o fazia a blusa subia, as calças desciam e o fio dental invadia a esfera visual do Anastácio “Beija-flor”, que, sem máquina, estava a filmar tudo.
Mais ao lado, a Solange, sentada junto do seu amor, o Carolino, “chulo de uma mulher só”, talvez pela força daquele tinto, néctar, que parecia ter sido fervilhado em vinho mosto por um qualquer anjo Serafim, apalpava o rosto do seu querido, como nunca fizera com nenhum cliente na rua estreita do poeta trabalhador. De vez em quando olhava o céu, como se agradecesse a Deus por lhe dar tamanha felicidade. O Carolino, não sei se para marcar terreno, pouco ria. Talvez pensando que um sorriso num proxeneta seria o mesmo que um comerciante dizer que a vida está boa. A ser assim, naturalmente, era uma brecha na defesa contra os invasores pagãos.
Mais ao lado, sentado noutra mesa, estava o Etelvino –não sei se conhecem, se calhar não-, é aquele gajo de meia-idade, que fala muito bem e até é conhecido aqui nas vielas como o “cantas bem mas não me alegras”. Certamente já o viram bem, costuma estar sentado todos os dias na esplanada do Café Santa Cruz. Este tipo, pela pose, onde estiver dá logo no olho. Cabelo cheio de brilhantina, com um perfume mais intenso que o chulé do “pé-ligeiro”, pólo de boa marca recoberto com um pulôver sobre as costas. Calça branca e sapatinho de verniz…já estão a ver? Pois…é esse mesmo! Eu vi logo que vocês não recordavam outra coisa. Quem é que não conhece o Etelvino “cantas bem mas não me alegras”? Pois, hoje, o marmanjo está sentado no Romal com uma cota que é um espadalhão. Palavra! Ai, nossa Senhora dos Aflitos! Aquele colo quase todo aberto fazia ressuscitar um morto. A inveja que eu tive do Etelvino. Eu seja ceguinho se não me apeteceu mandar o caramelo para qualquer lado e sentar-me em frente ao “Cadilac” reluzido. O problema era o consumo, uma máquina daquelas é de alto consumo…não sei me entendem?!
 Entretanto chegaram as 22 badaladas, rebatidas no velho sino de Santa Cruz. Como um quadro de Velasques, com todas as suas meninas, o Largo do Romal estava emoldurado de todos os velhinhos que ainda resistem a morar nesta parte Baixa da cidade.
A banda “Arpa e Dança”, começou a tocar Quim Barreiros, “deixa cheirar teu bacalhau”, e a convidar para dançar. Estava aberta a pista de dança ao ar livre. Foi então que uma grande tragédia poderia ter acontecido. Às tantas, a Valéria, agarrada à Segismunda, então não é que começam ali na roda a rebolarem-se todas que parecia coisa má? Ai, Nossa Senhora, mãe de todos os carentes sexuais nos valham! Só sei que os velhinhos começam todos a ver aquela cena…os olhos pareciam querer saltar-lhes das órbitas, por que, naturalmente, perante uma visão erótica daquelas, cresceram. Começou a ouvir-se “pum, pum…pum, pum!, até as árvores começaram a tremer. Ai, meu criador, parecia o fim do mundo, o coração dos velhotes pareciam aquelas velhas locomotivas a carvão. Eu seja ceguinho, só estava à espera de haver ali uma razia das grandes na velhice…e o Cento Histórico, que já tem tão poucos habitantes ficava ainda mais desguarnecido. Ai, Senhor!, que aflição. Felizmente que embora as carroçarias não valessem um costelo, os motores dos velhotes lá se aguentaram. Fosca-se, nem quero pensar na desgraça eminente que esteve prestes a acontecer.
 Passaram para aí uns quarenta e cinco minutos, o Clemente, como se tocasse a reunir a tropa, lá fez o discurso institucional: “cá estamos nós mais uma vez reunidos pela Baixa. Por ela fazemos tudo. Obrigados meus amigos…a Baixa merece!”. E o pessoal bateu todo palmas desbragadamente. Até umas andorinhas, a dormirem no beiral, acordaram estremunhadas e ficaram a olhar para aquilo com cara de poucos amigos.
E o baile continuou. Agora era o Carlos Mendes, o “mandador de fogueiras”, que mandava ali: “mulheres ao centro, homens fora…e volta atrás…e roda para a esquerda”, mas o pessoal só tinha mesmo olhos era para a Sigemunda e a Valéria. Queria lá saber do rodopiar do Carlos Mendes…

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