quarta-feira, 9 de junho de 2010

O CONTO DA SEMANA...

(IMAGEM DA WEB)


DIAS DE MIM…


I

Estou debruçada na janela. Apesar de ser Junho está um tempo outonal. Por momentos sinto os pingos de chuva borrifarem-me o rosto. Que bom! Que bem me sabe esta sensação de frescura. Imagino as grossas gotas de água a caírem na terra seca e, no contacto abrupto, saírem pequenas nuvens de vapor. Um pouco mais além avisto um pássaro meio enjeitado, com as asas caídas, meio recolhido no beiral. Talvez à espera que o sol se lembre de brilhar.
 É aquela visão de passarinho abandonado, triste e sozinho, que, num ápice, me transporta para a infância.

II

A minha infância…não consigo destacar um detalhe que me tenha marcado mais que qualquer outro. Foi tão apressada a minha meninice! Quase não a relembro como tal. Interessante, agora que penso nela, neste ponto, talvez tenha de recordar mais do que teria suposto. Sinto na minha mente as imagens a caírem, devagarinho, como água que, lentamente, jorra de um riacho junto à vereda calcorreada por mil caminheiros sequiosos.
Nasci de uma junção de opostos. Mãe espanhola e pai português. Madre com raízes tão profundas que é inadmissível arrancá-las da terra. Pai com asas tão grandes que é impossível baixá-lo das nuvens. Esta união é tão perfeita e equilibrada que dura há mais de meio século.
Sou a segunda de cinco irmãos. Uns são filhos da Primavera, outros do Verão. Eu sou filha do Outono. Os meus irmãos são louros e de olhos claros. Eu, em contraste, sou escura e de íris daquele castanho tão escuro que muitos chamam de negro.
Fui sempre a “diferente” na família e, naturalmente, apelidada de “feia”. Vivi e cresci sem mimos. É verdade, não por haver diferenças para os meus pais, mas porque ficávamos ao cuidado da minha avó materna, que não era dada a grandes emoções e as poucas que tinha reservou-as para mim.
Desde que eu nasci deixou de falar com o meu pai. Acredito que talvez por esse mesmo motivo eu era a neta com quem, decisivamente, não simpatizava. Habituei-me a ouvir comentar a minha fealdade em particular e a minha tendência para a mediocridade no geral.
Cresci guardada nestes comentários e respectivos castigos. Por opção, no meu quarto, vivi rodeada de todos os livros que, às escondidas da minha avó, conseguia ler. Em voos de imaginação, escapava assim da minha realidade palpável, mas descobrindo o mundo, para lá da janela, através do que lia. Aprendi a falar espanhol e a escrevê-lo porque li o D. Quixote de La Mancha com sete anos na língua de Cervantes Em seguida estudei todos os livros que encontrei por lá, nas estantes, neste idioma e que eram trazidos por um meu tio embarcado, de quem, estou certa, herdei o gosto pela leitura.
Não foi difícil perceber que a criança silenciosa, que era, tornava a minha vida mais harmoniosa lá em casa.

III

Estava quase a fazer cinco anos, a minha mãe, numa tentativa desesperada de me afastar o maior tempo possível da minha avó e na expectativa de “domar a peste”, que eu era, matriculou-me na pré-escola, onde a professora, à antiga portuguesa, com direito a reguadas e tudo o que fosse necessário, se comprometeu a instruir-me e a disciplinar-me devidamente.
Quando, com sete anos, iniciei a escola primária, já sabia ler e escrever. É evidente que não conseguia entender tudo o que lia, tendo em conta o tipo de livros que tinha à mão, mas o pouco que conseguia apreender fascinava-me o suficiente para manter o meu interesse pela leitura. Acho que já nesta altura a minha imaginação conseguia preencher as lacunas derivadas do meu pouco enxergar. Ainda hoje creio que qualquer história contada num livro é sempre subjectivamente ampliada em magia por quem a lê.
Fui crescendo desta forma rodeada por livros de todo o tipo. Com o tempo, fui aprendendo sobre os meus gostos. Fui ganhando opinião, ao constatar que podem existir, e até coexistirem, várias sobre o mesmo assunto, sem que uma prevaleça ou seja mais importante que outra. Depressa cheguei à conclusão que não há nada mais triste num espírito que não ter uma… própria. Mas também descobri que nem sempre se deve dá-la. Por vezes é preferível esperar que no-la peçam.
Aos dez anos recebi do meu tio embarcadiço o meu primeiro Diário. Quase em simultâneo, recebi autorização para me fazer sócia da Biblioteca Municipal. Estes foram os melhores presentes que me lembro de ter recebido em toda a minha infância.
Foi mais ou menos isto a minha pré-adolescência: uma menina que nunca foi “princesa” como tantas outras que, pelos variadíssimos motivos, nunca o puderam ser, mas que teve a incrível vantagem de poder sonhar com outros e tantos reinos fantásticos através do que lia.
Cheguei à adolescência acreditando que era muito feia. Por esse motivo não me aproximava muito do sexo masculino. Sentia-me totalmente incapaz de atrair qualquer rapaz. No entanto, essa época tão importante na vida de uma rapariga, contra todas as expectativas, mostrou-me que, pelo menos, assustadora –no sentido de meter medo ao susto-, não era.
Hoje não me considero bonita. Nunca consegui pensar em mim nesses termos. E continuo a ser diferente de toda a família, como se não pertencesse a ninguém. Parafraseando um escultor, que em tempos me convidou para posar para ele, “represento a típica mulher latina”. Mais precisamente a personificação da Península Ibérica, segundo as suas palavras. Talvez seja esse o motivo pelo qual os homens se sentem tão atraídos por mim.

IV

Sempre gostei de filosofia. Gosto de Nietzsche. É um pouco machista, mas revejo-me nas suas teses destruidoras de um Deus omnipotente. Apesar disso, com a idade, talvez pela dúvida, tornei-me agnóstica.
Às vezes sinto umas dúvidas profundas, que me assaltam: “Quem sou eu? Porque me procuram as pessoas? Porque andam à minha volta como mosquitos em torno da luz?”. Sei lá! Se calhar, porque gosto de ajudar e sou simpática…eu sei! É isso sim! Tem de ser isso! Não há outra explicação! Mas ao tomar consciência desse facto, faz-me sentir só. É como se vivesse numa ilha onde é difícil chegar e, os que chegam, verdadeiramente, nunca me conhecem –apesar de pensarem que sim. Eu deixo-os alimentarem-se desse engano falacioso. Acredito que só nos chegam a conhecer quando queremos mesmo conhecê-los. Sem esta verdadeira vontade nunca ninguém chega a transpor a porta de entrada, onde se reflecte a imagem, mas apenas uma sombra, nunca mais do que isso. Tantas vezes criamos e projectamos uma representação errada intencionalmente. Outras vezes, entregamo-nos, quase em êxtase, esperamos tanto, tanto, mais do que devemos, e a consequência é uma frustração impossível de descrever na bruma da desilusão.
Cedo descobri que conseguia desenhar na perfeição tudo o que queria reproduzir. Cheguei a pensar em seguir belas artes.
Há muito que me revejo a escrever. Consigo recordar-me, no recanto da minha mente, ainda criança, e ver-me a passar para o papel pequenas histórias de um mundo que imaginava e sentia uma necessidade incrível de ilustrar alguns desses personagens imaginários e só meus. Em adulta fui naturalmente desenvolvendo a escrita. Gosto de escrever textos com algum erotismo. Agrada-me o tema e considero-o tão importante nas nossas vidas como qualquer outra coisa das que são essenciais para a subsistência humana
Sempre gostei de sons. A música é tudo para mim. Está ligada ao mundo das emoções, dos sonhos, das lembranças…quantas vezes a nostalgia nos chega e nos liga à melodia “daquela canção”. Seja pela saudade de um tempo passado, ou de uma pessoa que a nossa memória já não lembrava. Outras vezes somos invadidos por uma alegria repentina, só porque determinada música nos deixou bem dispostos.
Adoro todo o tipo de música, mas, verdadeiramente, nunca um concerto me emocionou tanto como uma ária de ópera.

V

Casei com um homem por amor. Cedo percebi que era uma pessoa fraca de espírito, com tendência para a adição e sobretudo para a boa vida.
Tinha vinte anos quando demos o enlace. Casei cheia de sonhos e completamente apaixonada. Cedo descobri que acertara em cheio…na alma errada.
Ele tinha mais ou menos a minha idade. Tinha um gosto apuradíssimo para o descanso e o “far niente”. “Boa vida”, para ele, traduzia-se em beber umas cervejas, fumar uns cigarros e dormir, de preferência no intervalo das refeições. Fui-me apercebendo disso ao longo do tempo. Nos primeiros três anos as coisas até não correram muito mal. Entretanto nasceu o meu filho…e as coisas começaram a piorar.
O meu marido não me maltratava fisicamente, mas, no resto, psicologicamente…nem quero pensar. De tal forma que cheguei a desejar estar naquela idade em que a única coisa a esperar da vida…é a morte
Estou separada há 15 anos.
Sinto-me muito bem comigo própria. Tenho plena noção das minhas inquietações. Sou perfeccionista. Sou exigente, demasiado exigente com os outros, eu sei! Detesto a mediocridade. Talvez seja esse o motivo porque tantas coisas ficaram adiadas na minha vida.
Gosto de ajudar os outros. Impossível não fazê-lo, podendo. Às vezes prejudico-me com isso, mas não penso nas consequências da minha entrega. Não gosto de injustiças. Ainda que, muitas vezes, me sinta impotente para fazer algo. De qualquer modo deixo a mensagem para que o necessitado saiba que existe alguém com quem pode contar. Tento transmitir esse apoio psicológico. Eu existo sempre para quem amo, e quem amo sabe isso. Sem qualquer dúvida.
Acho que a solidão pode arrasar com uma pessoa. Não haverá nada no mundo pior que alguém sentir que está só. Num mundo globalizado é uma tristeza sentirmos que, tantas vezes, estamos sozinhos.
Às vezes apreendo que as pessoas se “colam” a mim como grude. Acontece um pouco porque, certamente, por a minha disponibilidade para elas ser quase ilimitada.
Estou quase sempre rodeada de gente. Muitas vezes sou acordada a meio da noite…acontece. Mas quem sabe, ou procura saber, como estou eu? Alguém se preocupa se estou só e em profunda solidão?










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