quinta-feira, 30 de outubro de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (33): A NATÁLIA DO EMPALHAMENTO

(FOTO DA D. NATÁLIA MORAIS, GENTILMENTE CEDIDA PELO MEU AMIGO ALCIDES REGO)

(A CAPELA DA MINHA ALDEIA, BARRÔ)

Se falarmos aos mais novos numa indústria que, apesar de só recentemente ter desaparecido, e que, mesmo assim, ainda convive connosco, embora em pequenos resquícios de amostragem, certamente vão pensar que era impossível que fosse assim, na forma, e na substância, como vou contar. Poucos saberão, e acreditarão, que, num tempo de memória que, aos poucos, se vai esfumando, era perfeitamente normal revestir uma garrafa ou garrafão, com “traje de cerimónia”, durante 15 a 20 minutos de trabalho manual. Falo, evidentemente, como já viram, de uma profissão em acelerado desaparecimento: o empalhamento em vime de garrafas e garrafões.
Antes da “invasão” do plástico, que se deu, em pleno, há cerca de duas décadas, toda a indústria do vidro para engarrafamento estava ligada a esta arte ancestral. E falar desta profissão é falar da minha amiga Natália Morais, que mora em Barrô, a nossa aldeia comum, ali, como enclave, entre a Mealhada e o Luso.
Falar desta septuagenária é contar uma história de resistência, de adaptação à vida, com todos os altos e baixos. Falar com esta mulher de cara arredondada, maçãs do rosto avermelhadas, olhos vivos, e sempre com um sorriso encantador, é um gosto. É como uma rosa rara descoberta num jardim proibido.
Começou nesta arte tinha então 27 anos. Ainda que professe uma religião protestante, lembra-se, 1963, foi o ano em que foi eleito um novo Papa, em conclave, o cardeal Giovanni Battista Montini, que viria a tomar o nome de Paulo VI.
Chegou a ter 24 pessoas a trabalhar na sua pequena indústria. Do seu “atelier” saíam garrafas e garrafões empalhados para as firmas Barbosa & Almeida do Porto, para o Santos & Barosa da Marinha Grande, Para as Caves Messias, na Mealhada, Para as Caves Primavera, na Anadia e para tantos outros que nem lembra. Recorda-se, por exemplo, por alturas do Natal, era uma procura louca por causa dos cestos empalhados para colocar os brindes.
Na sua pequena oficina, em Barrô, em que, para além de nas feiras de artesanato ser uma das estrelas principais, hoje faz apenas pequenas encomendas. Reparo na destreza das suas mãos, calejadas pelo tempo. Parecem contorcer-se vigorosamente, como dois corpos enrolados um no outro. Como se tivessem vida própria, numa mistura de volúpia, em que não falta o gemer, dividido entre a dor e a carícia, das vergas manuseadas por esta deusa de artes e ofícios.
“isto, esta actividade, foi sempre muito dura”, refere-me, quase em segredo. “Acabou porque é muito trabalhosa e hoje já não há quem se queira esforçar. Sabes lá tu o que isto custa? Interroga-me com ar desafiador. Perante a minha total ignorância, começa a contar-me o brutal trabalho que dá “trabalhar” a verga até esta estar pronta para servir de capa protectora a um qualquer garrafão ou garrafa.
“Primeiro, é preciso cortar a verga em Novembro e Dezembro. Depois é preciso fazer o“embacelamento” (enterrar o vime na terra). Depois da Páscoa a verga começa a rebentar. É então altura de a retirar da terra e começar a operação da “esfola”. Esta “esfola” é feita com uma navalha. A seguir é preciso seleccionar toda a verga. A mais grossa num lado, a média para outro e a fina para outro ainda. Esta verga mais fina é para as asas e a média é para o “corpo” das garrafas e garrafões.
Depois de esfoladas à navalha, as vergas, são colocadas ao sol para secarem bem. Depois de seca é atada em molhos e guardada ao “enxuto” (resguardado das chuvas) para ser utilizada quando necessário.
Antes de ser empregue, tem de estar 24 horas dentro de água. Depois, a seguir, a mais grossa, é “rachada” (cortada) em três partes. Seguidamente, é passada na máquina de “5 escalos”. A primeira que sai, por ser fraca, não se aproveita”.
“Vês?, com este hercúleo trabalho, achas que alguém quer continuar esta arte?”. Realmente, creio que não, remato com toda a convicção.
Mais uma vez, aprecio o “bordar” laborioso da minha conterrânea Natália. É sem dúvida uma artista. Enquanto conversávamos as suas mãos nunca pararam. Em cerca de vinte minutos, das suas mãos, saiu um obra-prima.
Quando lhe pergunto porque continua na arte, uma vez que, presumivelmente, não dará nem para tomar o pequeno-almoço, responde-me, com aquele brilhozinho nos olhos que tão bem conheço nas pessoas enamoradas: “que queres? É a minha vida, é o meu amor, a minha paixão!”

4 comentários:

Anónimo disse...

O nosso amigo Sílvio Fernandes também foi "industrial deste ramo", no Luso, durante bastante tempo. E ainda há pouco tempo estava activo na cestaria de vimes lá para os lados de Penalva do Castelo, para onde se mudou há anos, deixando para trás o Café esplanada S. João, e aos herdeiros a quinta com o Restaurante Cesteiro. Aqui o recordo com simpatia, admirando a a sua aura de um bom homem de trabalho! Gente que nos tempos que correm parece que já não se fabrica...

LUIS FERNANDES disse...

Obrigado pelo comentário, Afroluso. Realmente, fazendo um exercício de memória, lembro-me dele, sim.
Um grande abraço
Volte sempre
Luis Fernandes

Anónimo disse...

Caro Luís,
vai ao Adelo ver uma foto da tua terra.
Afroluso

Anónimo disse...

toino, gostei muito da foto, tens de arranjar mais fotos, pois preciso. obrigado Natália Morais