terça-feira, 7 de outubro de 2008

"REPÓRTER ESTRÁBICO": UMA NOTA DE DEZ EUROS



 O César é um simpático arrumador na variante paralela ao rio Mondego, junto ao Estádio Universitário. Um pouco na linha de figura típica existentes nas cidades, que não perdemos um segundo a fitá-los nos olhos. Habitualmente olhamos para o todo, para a sua imagem, algo excêntrica, que foge aos padrões convencionados, e nunca para as minudências que os tornam originais.
Observamos estas pessoas com o mesmo olhar que prendemos numa ilustração, com a diferença de que esta é mirada sob um ponto de vista de arte e a estes “bacanos” olhamo-los com algum desdém. Como se eles pudessem representar uma posição que aviltamos, que embora saibamos que a qualquer momento, por acasos da vida, possamos cair nela, só esse simples pensamento, repugna-nos. É como se estes indíviduos, normalmente boçais pelas circunstâncias da sua existência, algumas vezes, deficientes mentais, fossem o paradigma dos medos que existem dentro de cada um de nós e, talvez por isso, os desprezamos, como se fossem uma coisa abjecta, esquecendo que naquele corpo, com aquele aspecto, às vezes hilariante, existe vida.
Na minha dissertação, fazendo um retrato sociológico de alguns personagens que, na cidade, encontramos diariamente, sem o querer, fugi ao tema que me levou a escrever. Além de mais, saliento, o César, inteiramente, não corresponde ao retrato que enunciei. É uma pessoa educada, que, embora a sua figura o faça notado, trata da sua vidinha a arrumar carros, e assume, diariamente, como um profissional que se preza, a responsabilidade de “guardar” os automóveis dos outros a troco de uma moedinha que lhe permite viver, certamente com dificuldades, mas honestamente.
Todos os dias, de manhã, me cruzo com ele, cumprimenta-me e retribuo. Hoje, ao passar, com a chuva copiosa, a bater no chão e a fazer melodias desafinadas, o César estava profundamente feliz.
De guarda-chuva numa mão e uma nota noutra, o César, como se ensaiasse uns passos de dança, exultava de felicidade e alegria. Ao som dos pingos da água a cair na terra, parecia Gene Kelly no “Dancing in the rain”, dançando à chuva. “Olhe, olhe, dez euros! Achei dez euros! achei dez euros, graças a Deus! Graças a Deus!”, não parava o César de se repetir, olhando para mim, como se tivesse que compartilhar a sua alegria com alguém.
Talvez, numa primeira análise, desvalorizemos o acto, tendo em conta a pouca importância da nota de dez euros, mas ver aquela alegria no rosto daquele homem, aquela nota de ínfimo valor fiduciário, foi espectacular. Para mim, ter a sorte de presenciar aquele quadro, foi de um apreço extraordinário. O destino, como uma roda da sorte, com pouquinho, no acaso, vai fazendo feliz quem aspira a muito pouco.

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